terça-feira, 30 de abril de 2013

Campo Santo

O mundo muda constantemente diante de nossas escolhas. Cada gesto, palavra e pensamento são decisões que não voltam mais. Tentamos decifrar um quebra-cabeça eterno, em que jogamos apostando na sorte de cada minuto. Uns acreditam na fé, outros em planos, mas na vida por vez ou outra hesitamos ao questionar sobre algo do que poderia ter sido em deslumbramentos otimistas. Meras suposições supérfluas, em que traçamos ações e reações para chegar a um resultado intangível.
Se eu não fizesse...Se eu não desistisse...
Eu seria outra pessoa.
Não me preocupei de ela ser filha do coveiro, nem de morar ao lado do cemitério. Pior que isso era descobrir suas mentiras. Ela não trabalhava no shopping, seu pai não era bancário, nem mesmo seu nome era aquele. Mesmo livre do fardo da vergonha, quando toda a verdade foi posta, fatos omitidos corroeram minha confiança. Era como admirar um lindo felino, sem lhe dar as costas.
Mesmo com tantos motivos escarrados para eu cair fora, em certos momentos a paixão subjugava a razão. Se meu orgulho não tivesse me privado dela, hoje eu seria parte daquela família, aquele pandemônio. Os anos passariam, eu me habituaria com o ambiente, e veria alguma beleza por detrás de cada copo de pinga de sua mãe, seu pai, irmãos, dela e de nossos filhos. As brigas seriam divertidas, não existe amargor no churrasco seguinte.
Aceitaria de bom grado a oferta de seu pai. Ela me convenceria de que ajuda-lo seria algo rentável e dispensaria todas as minhas ambições de um futuro passado possível. Sem estratégias, diplomas, aparências: "Sete palmos abaixo".
Logo meu sogro se aposentaria, restando o velho Opala vermelho cor sangue e uma tradição a iniciar. Apresento a todos o mais novo coveiro da cidade: eu mesmo, o piá sem caráter. Papa-defuntos capaz de propor aos chorosos familiares a melhor morada eterna, azulejada em arquitetura fúnebre moderna de Art Nouveau inspirada em quadros de Klint.
E pelo que me conheço um pouco bem, nenhuma lenda de fantasma seria horrenda o suficiente para espantar e me fazer deixar de caçar profanadores necrófilos e ladrões de placas de metal, munido de garrucha e balas de prata.
Túmulos bem cuidados, lírios de plástico, velas que não se apagam. Um universo cru e do tamanho de um terreno cheio de ossos e corpos em putrefação.
Isso se eu não fosse isso que sou...


* Texto retirado de "CRÔNICAS ARAUCARIENSES"  Copyleft 2010 - Rico

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Pinhão no Acarajé


O baiano tenta conquistar uma polaquinha. Aprendeu que as meninas araucarienses mostram-se difíceis
com peão de obra. Por isso, reserva um mês á pulso , ou melhor, á fio, para aprender o sotaque do leite quente.
Calado até passa por piá. Deixou a bermuda e o chinelo em casa, por precaução.
Convida a loirinha delicada para comer uma água, ou melhor, tomar um chopps no Bakanas.
Assim, que se sentam á mesa, ele reconhece de longe um colega de trabalho e o já vai gritando de longe:
- Colé de mêrmo, pivete!
Ele percebe a mancada que deu e explica que está imitando o amigo nordestino. Mas fala com malemolência tão
típica, que é difícil acreditar.
Deixa a menina á vontade para que ela explane sua vida inteira. Ele todo ouvidos, não dá pistas de sua procedência.
O garçom vem com a conta.
- Oxe! oxe! oxe! Aí, é barril!!!
- O que houve? - ela pergunta espantada com sua esquisita interjeição.
O rapaz disfarça, desconversa e engole a seco duas cervejas somadas a mais. Não quer fazer barraco, não quer
rodar a baiana, logo no primeiro encontro.
Ele propõe um passeio a um lugar mais calmo, uma volta á pé pelo centro. Logo na saída do bar tropeça no calçamento solto.
- Fio do cabrunco!
- De onde do interior você disse que veio mesmo? - desconfia a moça.
- Camaçari. É uma cidade pequena que fica próxima de Londrina.
Ela se despede mais cedo do que o previsto quando o ônibus aponta na esquina.
Como dizem na obra: "todo castigo para peão é pouco".