terça-feira, 28 de outubro de 2014

O Boto do Passaúna

Seguindo o senso comum, deu uma guinada em sua vida e perseguiu seus sonhos.
O baixinho quarentão largou a mulher decente, saiu do bom emprego nas Companhias de Gás e mudou-se para vila mais sem graça de Araucária.
Com o dinheiro do acerto comprou uma zona, um puteiro bem furreco. A partir disto, o lema era festa todo dia. Não haviam clientes, todos eram grandes chegados. Tudo por conta da casa. Ninguém saia perdendo. Mulheres e cerveja de graça. A festança no cubículo durou uns quatro meses. Torrou a dinheirama toda num piscar de olhos. Os fregueses e amigos de repente sumiram. Comer o estoque não resolvia mais nada.
No meio do auê, fez empréstimos para uma porção de gente e ninguém o pagou. Os que deviam fiado deram no pé.
Revoltado, comprou uma pistola e fez arruaça por toda vizinhança. Mirou errado e acertou gente inocente. Deu merda. Sumiu por uns tempos.
Vendeu o prostíbulo para pagar uma penca de devedores e alugou um casebre escondido no fim do Shangri-lá.
Quando a polícia o encontrou, vendeu o carro e tudo mais para pagar advogado. Da picape de luxo restou apenas uma magrela sem freio.
Certo dia, angustiado e muito louco de goró, socou o espelho que restava do salão da sacanagem e retalhou a mão.
Sofreu para vender sua coleção de discos raros de rock e se manter. Nas andanças pelas imediações do Teatro da Praça conheceu uma menina roqueira, que de cliente virou namorada.
Voltou a um rumo certo. Sentiu a necessidade de ter um emprego para obter a aprovação dos pais da garota de preto.
Nada nas Companhias de Gás por causa da mão lesionada.
Mal sabia que uma antiga funcionária da noite ainda nutria uma forte paixão e o perseguia.
Quando o inevitável encontro se deu entre o antigo rolo e a atual na minúscula Araucária foi aquela folia. As moças se tramaram na pancada.
A briga foi feia e a namoradinha morreu com uma pedrada na cabeça.
Envolvido em outra confusão, optou pela fuga de vez.
A loiraça só foi deixá-lo em paz depois de presa.
Solitário, vive na esquina, rodeado de um monte de pirralhos maloqueiros. Quem passa, pode até pensar que ele os alicia. Muito pelo contrário. Ele que não consegue largar da rua. Do que restou daquele pequeno submundo.
Também diz que foi gigolô em Curita, DJ de bailão na Colônia Cristina, bancava o playboy em Contenda, soldado guerrilheiro na Lapa, salva-vidas nas cavas do Passaúna. Se é verdade, eu não sei. Eu nunca o vi sair daquele canto.
Sua vida é a história que conta todo santo dia. O baita homem barbado permanece estático enquanto não terminam suas peripécias do passado.
O anti-herói araucariense tem apenas um defeito: fica dando moral prá piá.

Os intocáveis

Um novo ano, uma nova turma e uma sala repleta de desconhecidos. Um piá desconhecido, ao invés de puxar algum assunto e fazer amizade normalmente, me diz na lata que somos primos. Foi um baque. Acabou a folia, passei a aula inteira, muito pensativo.
Na saída, um polaco alto, vai de encontro ao menino. Cumprimenta meu pai, com um aceno discreto. Sem muito contato, como se houvesse uma barreira entre eles. Um impedimento moral. Um sorriso demonstra alguma remota parceria entre eles.
Primo de segundo grau. Filho da prima do meu pai, que se separou de não sei quem. Não entendi direito. O inconcebível é que existam ex-parentes.
Os anos se passaram e perdi o contato. Escondeu-se tão bem de mim.
Dias desses meu pai contou-me que continua escondido. Pelas estripulias, foge da policia, pelo Morro do Piolho. Virou história secreta, assunto esquecido.



Um novo ano, um novo emprego e um escritório repleto de desconhecidos. Uma polaca desconhecida, ao invés de se apresentar, puxar assunto, me diz na lata que deveríamos ser parentes. Fiquei no vácuo. Sem entender nada.
Disse que freqüentava minha casa - Não sei como.
Se apresentou como Clarisse, a namorada do meu irmão mais velho.
De minha infância apenas lembro de meu irmão voltando mais tarde, cantarolando seu nome no violão. Minha mãe foi a única presença feminina naquela casa. Eu saberia.
O tempo curou muito bem as cicatrizes. Meu irmão não chorou mais. As cartinhas de amor foram pra fogueira. Um caderno com poemas virou papel para rascunho.
Como explicar a ela que virou história secreta, assunto esquecido?



Outro ano que se foi. O casamento em que fui padrinho se desfez. Ajudo meu ex-cunhado a empacotar suas coisas. Sendo prático, ele vai voltar para ... temos de evitar novos churrascos. O time com um a menos, no futebol de quarta. Sem mais intéra. Vai se embora o parceiro de muitos rolês.
O cara esquisito, vendedor de carros, estudante de História, vai fazer falta. Nunca mais rock gaúcho por esses lados, nem guaca mole e cervejas importadas.
Típico curitibano com mil amigos infiltrados em todas as brechas possíveis da sociedade. Logo aparece um novo amor. E o ex, tem o nome proibido. Um elemento de uma história secreta, assunto esquecido.



Outro ano que se foi. O namoro se desfez. A confiança ruiu. Me diz na lata que devemos ser apenas amigos. Uma semana depois, quando recebo o recado para visitá-la, não achei que ganharia um envelope com todas as fotos rasgadas. Aquelas em que apareço feliz. A paixão desapareceu e nossos caminhos se distanciaram de vez. Houve choro, fossa, porre, e tudo mais como o de costume.
Abandonei o curso de inglês, o grupo de jovens da igreja e o povo gente fina daquele bairro. Meu ônibus agora é outro e até a barraca de cachorro quente.
Um batateiro ouvindo samba, não era lá, muito trivial. E revendo meus passos, vi o quão ridículo o amor me tornou.
Virei persona non grata na sua metade da cidade. Na vida de muita gente, tornei-me invisível. Pertenço a uma casta intocável. Um homem de preto, um fantasma do passado.
Me movo silencioso. Só eu percebo. Eu estou entre eles. Eles estão entre nós.