quarta-feira, 27 de março de 2013

O bárbaro no volante

Disseram-me que ele tinha pacto.
O carro capotou na Rodovia do Xisto, virou um monte de sucata como lata de refrigerante amassada. O motorista sobreviveu milagrosamente sem nenhum arranhão. Dizem que em meio aos destroços recebeu uma funesta visita. Ele prometeu um resto de vida de maleficências, caso fossem lhe dado mais anos. Se houve preço eu não sei.
Quem testemunhou?
Bem, conheço o amigo do primo terceiro e o tio do vizinho que juram que é verdade.
Depois que reformou seu Escort, o transformou em arma mortal. A cores vermelha e preta na lataria eram algo realmente sugestivo.
Descia a ladeira á milhão, no galeto. Tirando fina de qualquer pedestre. Quando ele apontava no começo da rua, as rodinhas de maloqueiros pelas esquinas se recolhiam. Crianças pulavam muros, coitados dos velhinhos próximos do meio-fio.
A calçada nada significava se ele não simpatizasse com a pessoa. E a gargalhada macabra atrás do volante mostrava que ele não tinha amigos.
Pulava os bueiros com gosto, as lombadas com raiva. Atrás do poste ou do ponto de ônibus eram lugares seguros.
As denuncias da vizinhança de nada adiantavam. A polícia tinha mais com o que se preocupar. A sorte era dele, que rasgava as ruas da Cidade-Símbolo com o pé mais pesado que se viu.
Crianças do bairro eram educadas a não falar com estranhos e tomar cuidado com o barbudo barbeiro. Andar na contra-mão dos veículos para melhor avistar o louco em seu vôo baixo.
Num destes dias de terror, me arrisquei demais indo a pé até a frente do colégio perto de casa para falar com certa menina bonitinha. Recebi alguns recados e algumas cartinhas amorosas dela e fui conferir pessoalmente.
Apesar da timidez, das poucas palavras, não demorou muito para acontecer nosso primeiro beijo, que foi interrompido aos berros por sua mãe surgindo furtivamente ao nosso lado.
Fiquei tão surpreso com a situação que fiquei sem reação. Ela não me alcançaria na corrida, mas e a fofoca que fariam sobre isso? Corro de fantasma, de polícia, do bando inimigo, mas não de mulher com perna varizenta, sozinha e desarmada.
A dona me levou de arrasto á sua casa, a uma quadra dali. Fui por obrigação. O pai chegaria ao meio-dia para almoçar e então teríamos a fatídica conversa.
Poderia ser tudo uma armadilha. A moreninha marcou o encontro e poderia também ter avisado sua mãe para forçar o namoro. É difícil não se enredar nestes joguetes.
Fui convidado a entrar e me acomodar no sofá da sala. Couro gelado. Ela não sentou ao meu lado, mas preferiu outra poltrona. Imaginei que ela seguraria minha mãozinha trêmula para dar-me forças neste momento tão difícil. Na minha mente ensaiei diversas teorias que explicassem como minhas calças largas e caídas eram sinônimos de pessoa idônea, honesta e trabalhadora.
Nos porta-retratos na estante, reconheço aquele cavanhaque. Faltava chifre e rabo para ser pior. O pai dela era o temido
O homem era perigoso para pedestres desconhecidos. Imagine o que faria com quem ameaçasse tirar seu “bebê” de casa.
A janela era alta demais para pular. A porta fechada a chave.
Na TV, a cada intervalo da programação anunciam a reprise de “A morte pede carona”.
E eu estava ali encurralado.
O chá de cadeira foi longo. Duas horas de atraso e nada do homem.
Ouvi falar que todo dia ele percorre sete léguas fazendo suas maldades na direção. Não era o momento para perguntar disso. Quem sabe daqui uns anos.
A mãe telefonava a cada meia hora para saber do esposo.  O carro enguiçou.
- O namoro de vocês não tem problema. Sei que não é para sempre
Ela poderia estar falando da inconstância dos relacionamentos atuais ou de meu fim próximo com o corpo moído e estirado debaixo das rodas.
Para não perder viagem, também cansada de esperar, a senhora fez suas ordenanças. Eu deveria comparecer todo domingo á tarde, apenas este horário e namorar ali no sofá frio, junto com pai e mãe. Nada de se agarrar pela rua. Passeios a cada duas semanas e apenas se acompanhado da irmã mais nova. Voltar para casa antes de escurecer. Ela aceita apenas flores e bombons como presentes. Não se deve beber, nem fumar, nem escutar música imprópria. Beijo no rosto. Sem ousadias. Para tudo pedir permissão.
É claro que concordei em voz baixa, sem sequer encará-la. Menti forçosamente. Eu mal conhecia a namorada, não valeria tanto esforço.
Do jeito que ela me pintou, pelos deveres e obrigações, parecia até que eu era algum bandido aliciador de menores.
Esperava aquelas perguntas básicas. Nenhuma das duas quis saber nada de mim. Sequer meu nome e sobrenome.
Sai ileso, sem nem se despedir direito. Correndo como o vento para não atravessar o caminho do barbudo.
Fiquei duas semanas fora de circulação. Obriguei-me a ficar incomunicável dentro de casa para acabar com o rolo. Bem feito para mim, que fico de folia com essas gurias novinhas.
Enquanto um cargo pesado me era dado, encontrei a danadinha pela madrugada na farra.
Vi que o homem era normal. Se tivesse pacto, seu tanque de guerra não quebraria. O selvagem motorizado estaria adiantado nos fatos. Que presa seria mais fácil do que eu de mãos atadas no sofá da sala?

sexta-feira, 22 de março de 2013

Bonde dos Araucarienses


- Lá no Rio, o bagulho é feroz. Neguinho traficante anda de escopeta pelas ruas. Vi doido se exibindo com espada ninja. Eu era moleque e via altos corpos estirados. Bala perdida é mato. Sem falar que tem que saber entrar e sair, blá, blá, blá...
E o que o piá vai dizer? A coceira? As urtigas pisadas na lateral do campinho da Costeira? O chutão do perneta, que fez a bola sumir no meio da roça?
Aquelas monótonas tardes ensolaradas, tornaram se a exceção, num mundo tão violento e exótico.
No silêncio, ele tenta fazer amizade. Sequer consegue simpatia.

O que é que Araucária tem?


- O que é que se pode esperar de um lugar onde não fazem vatapá, sarapatel, caruru? Ah! Terrinha miserável da gota serena! Que frio arretado! Afêmaria! Que lugar é esse, onde até o pessoal é frio! Ninguém responde o meu “bom dia”! Ninguém conversa de nada de bom. Que gente besta!
O chefe esbraveja, enquanto os funcionários de cabeça baixa, apenas refletem sobre sua desgraça. Nenhum tem coragem de explicar que é assim mesmo.  Sobre Araucária, já dizia Carmen Miranda: “Ai, quem não tem balangandã”.

Fuzuê


- E o hoje tem?
- O quê? Hã?
- Bora pivete, bora lá jogar um baba. Depois, comer uma água lascada. Hoje, vamos largar o doce.
- O quê?
- Venha cá, galego. Por acaso você é irmão? É evangélico.
- Não.
- E porque é quietão deste jeito? Tá agoniado? 
- Não. Sou só araucariense.
- Logo vi. Tô vendo mesmo, que você é um cara sem quatchá, quatchá!
                      

O mundo é um palco


Em curta troca de e-mails, Samuel Brutal convidou Rico para uma visita á Igreja dos Loucos.
Despi-me da indumentária do Wilson e todo seu traço de normalidade. Esqueci-me das contas a pagar, da criança chorando, da mulher reclamando, do cachorro latindo no quintal. Vesti meu melhor boné, camiseta imensa, um tênis e uma calça larga roçando o chão. O vileiro metido a sabido, o piázinho sem caráter dá as caras. O Rico está pronto.
Raras são essas aparições em público. Nunca fui de frequentar a vida noturna, nem festas, sarais poéticos, nem sequer tenho relação com a elite cultural da cidade. Nada contra, até conheço uns poucos gatos pingados via internet. É claro, que um e-mail pensado e revisado não traduz a identidade real da pessoa, logo, não os conheço por inteiro.
No culto, lotado de pessoas ecléticas, debatemos muitos assuntos importantes como o Evangelho, filosofia avançada, produtos transgênicos e inúmeras ciladas conspiratórias de nível municipal a mundial. O que mais me chama a atenção e ver um soturno rapaz cabeludo reclamar de sua solidão.
Ele alega entender tudo que se passa á sua volta e que tenta lutar contra o emburrecimento planetário, surgindo heroicamente no meio da fábrica onde trabalha, divulgando suas teorias.
O mundo é um palco – brada apaixonadamente e em minutos está falando para o vazio. Os burros dão uma canseira, porém ele não poderia ficar quieto. Era o seu chamado vocacional.
Mas como falar sobre isso se o povo prefere a ignorância?
Como abordar um pelotão de jovens atuais descerebrados e vorazes cultuadores de electro-funk-pop-sertanejo?
Pelo menos ali, junto dos “loucos”, ele esperava ser levado a sério.
Algumas pessoas demonstram apoio ao seu desabafo. Parecia uma reunião de um grupo de auto-ajuda, algo como os eruditos-anônimos.
No fim do culto, todos se despedem e voltam para casa com a cabeça impregnada de Foucault, Truffaut, Artaud, Rousseau e lances de Nova Era.
Saí com alguns dos novos amigos para comer uma pizza. Perguntaram por skate. Não esperavam que eu estivesse de carro. Esperavam que o rádio tocasse um super rap nigga fela gringo, não um hino de louvor de igreja evangélica pentecostal. Do mano carçudo vileiro esperam qualquer fiasco. Quem sabe um arroto, um palavrão ou até um assalto. Quem imaginaria que ele não sabe representar bem o seu papel? Eu escolhi minhas próprias falas.

...

Considerando a teoria shakespeariana citada pelo cabeludo roqueiro. Discordo um pouco. Não o mundo, mas Araucária é o palco, onde milhares de personagens protagonizam seus papéis. As pessoas só fazem o que são condicionadas a fazer. O que lhes restou.
Quem consegue ser original? Sempre alguém já tomou o lugar. 
Invente ser um personagem folclórico e exótico pela praça Matriz. Terá que dividir espaço com Erne, o colono.
Quer ser bom grafiteiro, mano do hip hop? Temos o Peri, que dá conta do recado.
Roqueiro? Temos uma boa leva.
Escritor? Dentre todos, o Zanella é meu preferido.
Quer ser comediante que usa a herança do sotaque polaco? Isidório Duppa.
Pioneiros no teatro? Não dá mais.
Se a point da moçada for o posto de gasolina? Há essas horas, por aqui, está lotado.
Se a moda for axé? Temos nossos grupos. Se for street dance, estão lá os batateiros, num programa de TV de quinta categoria.
Se o esporte do momento for corrida de bicicleta, garantimos uma pista. Se for moto, damos o jeito.
Gente comportada e bonita, da direita, apreciável para fazer as graças em qualquer canto é o que mais tem.
Famílias tradicionais de encrenqueiros, secretárias amantes, jornalistas furrecas, bandidos animais, artistas botequeiros, ladrões oportunistas, taxistas linchadores, flanelinhas pedintes, políticos suspeitos, lolitas viciadas, riot girrls, hipsters, velhas putas. Não precisavam ser, mas aqui estão. É o bocado que lhes restou.
Yuppies, gente de nome e sobrenome, pastores, grupos de jovens cristãos, atletas da prefeitura, líderes estudantis, nobres professores injustiçados, camponeses inocentes. Todos foram rápidos na escolha.
Se duvidar, não tem vaga para fotógrafo de lambe-lambe.

...

Noutra manhã, enquanto aproveito pingado na panificadora, um velho senta-se no banco ao meu lado e pede um café forte. Infelizmente no balcão não há divisórias. Ele puxa assunto e em meia dúzia de palavras, estou aprendendo sobre Invasões Holandesas mais do que nas aulas de História. Seu sotaque nordestino lhe confere certa credibilidade. Acredito que ele deve ter vivenciado muita coisa em terras longínquas.
- Olha, eu vi muita coisa nesta vida. Trabalhei em muitos canaviais e fazendas no interior de muitos estados. Pernambuco, Pará, São Paulo, Bahia...
Finda meu ultimo gole. Devo me levantar e ir. Espero o desfecho. Aceno para que a balconista me dê logo a comanda.
- Seu menino, vi gente nascer, crescer, passar e morrer. No Mato Grosso, vi rapaz novo colocar as mãos em cavalo brabo e domá-lo apenas com um toque.
Sua voz rouca fica embargada. Os olhos brilham. Outros clientes percebem a estranha cena e me olham esperando uma reação. Fiquei estático na cadeira.
- Depois numa cidadezinha mineira, vi outro homem fazer o mesmo, era coisa de outro mundo. E tinha mais, viste? Quando era a época de queimar a roça, o homem caminhava até a cerca da fazenda, marcava o chão. E depois benzia o fogo, que nunca ultrapassava até o terreno do vizinho.
Faço cara de espanto por conveniência. Não há mais expectadores. Quanto á possível mentira deslavada, peço licença e sigo em direção ao caixa. Nas minhas costas ele me esfaqueia com a verdade.
- Para tudo nesta vida, há alguém que tem um dom. E quando você acha que viu tudo, sempre tem alguém melhor. Cada um de nós representa um personagem e no palco da vida não há ensaio.
Mesmo escutando um monte de lugares comuns, citações de Fernando Pessoa e frases feitas que nem eram de sua autoria, a conversa com o tiozinho me incomodou. Ele até que soube ser original. Volto para casa pensando em como me tornei um estereótipo. Será que sou uma cópia imperfeita de outro vileiro desconhecido e imitável? Tento imaginar o que fazer para ser autêntico e garantir meu posto. A parte que me cabe, não deve ser profanada por novos malandros. Ninguém mais do que eu.

Carmozino



Conheci Carmozino, andando pelas ruas do Jardim Shangai. Passaria como mais um cidadão comum, não fosse o rosto lambuzado de um creme branco e um colar de pequenos ossos no pescoço. Todo esquisito.
As roupas rasgadas de punk e os piercings espalhados pelo corpo são aceitáveis nestes dias de fim de mundo, mas passear descalço é exagero.
Sua pequena barbicha é como um troféu dos dezoito anos. Vive cantarolando músicas sertanejas de um jeito apaixonado, mas fica eufórico com Raul Seixas.
Eu soube que o colar era de uma carcaça encontrada na rua. Levou o bicho para casa para se decompor ás suas vistas. Os vizinhos não gostaram, chamaram a policia para averiguar. Perturbação de sossego. Motivo pelo qual foi expulso de casa. A gota d’água já era esperada.
Adotou um módulo policial abandonado como seu. Levou colchão, travesseiro e coberta. Volta para casa, quando precisa usar o banheiro.
Muitas histórias e façanhas são atribuídas ao irrequieto Temósclito Carmozino, o bem-querido louco do bairro. Com ele, o assunto nunca morre. Tão agitado, que vez ou outra fala com as paredes, com o cachorro, com o céu, com as mãos, com o que tiver pela frente.
Dizem que invadiu o Paço Municipal pela porta dos fundos e foi exigir do prefeito algumas melhorias. Ele não nega. Gabou-se quando começaram a asfaltar a sua vila na semana seguinte.
Na época das eleições, estava no palanque dos candidatos, como papagaio de pirata.
No jornal da cidade, apareceu sua foto como compositor da música ganhadora do Festival da Canção de Araucária. Parece que viver nas esquinas como vagabundo fez dele um exímio mestre das guarânias paraguaias. Todo mundo diz que foi erro de impressão ou somente alguém parecido.
É o único que conheço que conseguiu dormir no ônibus e acordar no outro dia no estacionamento do Triar. Alguma falha do pessoal da limpeza que o deixaram varar a noite inteira no banco de trás. Ele disse que ficou com duas zeladoras.
Namorou uma Teresa Lôca na Praça Matriz. De um dia pro outro ele se ajeitou. Cortou cabelo, tomou banho, ficou calmo e comportado. Então, ficava esse rapaz prá baixo e prá cima de folia com uma menina esquisita de saia rodada. Ela se passava por cigana e fingia ler mãos. A mentira corria solta, assim como o dinheiro gasto com crack. A maior das noiadas. Loucura demais até para ele. Largou mão. Não era bobo.
Numa fase espiritual, de terno e gravata, surgia nas igrejas da cidade, sempre alardeando um atropelamento na esquina. Enquanto meio mundo corre para ver sangue, ele aproveitava a deixa para bradar aos que ficaram: “Arrependei-vos, crentarada!”.
Voltou a estudar, mas pertencer a uma instituição e seguir suas regras deram um resultado negativo a ele. Não conseguia se concentrar. No caderno, as anotações, garatujas e rabiscos mostravam a fuga de ideias. Em suas idéias de grandeza, acreditava que seu pai era dono de Araucária, da Refinaria, do Bakana’s. Não era mentira, eram os primeiros sinais evidentes de loucura.
Compareceu á aula de chinelos. Outro dia, descalço. Também com uma baita cueca samba calção. Tudo o que geralmente se sonha, ele trazia para realidade. Que inveja. Só não conseguiu voar.
O fim da picada aconteceu quando apareceu com o cabelo e o rosto todo ensaboado. Os professores envolveram pedagoga, juizado, o escambau para tirá-lo da escola.
A falta de convívio social contribui para sua primeira depressão. Foi internado, mas escapou em poucos dias.
Sem sono, perambulando pelas ruas, topou com um pessoal se preparando para pegar um ônibus de excursão para praia. Entrou de gaiato e sumiu no mundo. Uns meses depois o viram trabalhando na balsa de travessia para a Ilha do Mel. Assim que gritaram seu nome, ele recobrou sua consciência. Mais ou menos.
Voltou á pé para Araucária. Não morreu de fome por que afanou um cacho de bananas em Morretes.
De andarilho passou a ser maratonista. Hoje, é atleta patrocinado pela prefeitura,
Na estante da casa de sua mãe estão alguns troféus ganhos e uma foto com seu ex-pai, o prefeito.
Apesar de tudo, de um jeitinho aqui e ali, esse maluco sabe viver.

Carmelo


Curso de oratória na capital, um ano estudando teatro no Seminário, benzedeira, zona, nada adiantou para criar coragem e perder essa vergonha.
- O Papa vem pro Brasil. Quem sabe com a benção dele, você mude – diz a velhinha aflita com o filho marmanjo incomodando dentro de casa.
Na TV, o jornal anuncia uma caravana que sairá de Curitiba para ir ver o Santo Padre em terras cariocas.
- Mãe, nem adianta. Não quero falar com essa gente. Tenho vergonha.
- Seria muito bom para você. Por favor, vá se distrair e conhecer gente nova. Eu ajudo, eu pago.
- Será que consigo chegar até o Rio de Janeiro sem falar com ninguém?
- Quer saber? Cale a boca!

O suicida


Vem de fora, o mais original suicida da cidade. O moço subiu no alto da torre da velha igreja e se jogou sem hesitar. Quem daqui imaginou algo assim?
Ele quebrou-se por inteiro e não morreu. Sorte de curitibano.
Sinto lhe dizer que dificilmente daria certo. Araucária é sumidouro de gente, mas “morte matada”.
Desovam-se corpos aos montes, pelas estradinhas rurais. Tiros e quedas ás margens do Passaúna. Tombam á tôa, por muito pouco, em nossos bairros mais distantes.
- Se for para aqueles lados, tem que levar escudo para se proteger das flechadas dos índios - citação costumeira dos araucarienses.
Agora agoniza no Hospital do Trabalhador enquanto muitos nem tiveram esta chance. Aqui, a todo o momento perecem na trairagem enquanto vem e vão, sem sequer dever algo.
Conforme a policia averiguou com seus parentes, sua vida estava de cabeça para baixo nos últimos dias. Inúmeras dívidas, demissão do emprego e o fim de um relacionamento amoroso parecem ser a motivação para o ato. Quem pensaria o contrário?
Ninguém sabe é que uma gralha azul alçou um voo rasante sobre sua cabeça a cada mau agouro. Foram três aparições, todas certeiras em seu fim. A ave o cercou no Centro, no Pinheirinho e no Boqueirão.
Acordou com o grasnar. Aflito, saiu de casa ás pressas. Viu de revesgueio o par de asas batendo em sua direção. Seguiu para Araucária, procurar uma velha benzedeira. Deu com os burros n’água. A senhorinha caolha morreu há algum tempo. Com sua nora sobrou apenas algumas receitas de chás medicinais e um livro despedaçado com significados de sonhos. Algum vizinho ainda vinha consultar sua sorte.
Pediu para a moça abrir na página que fala sobre pássaro, de preferência azul: Angústia, liberdade tolhida.
Justo num domingo, o dia mais melancólico da semana, com o prenuncio de nova tragédia, da possível prisão injusta entrou em choque. Sem norte, sem horizontes para a Cidade Sorriso, pulou para a morte, antecipando a dor.
E francamente, quem já viu gralha azul por essas bandas?
Jamais.

Bel-prazer


Disseram-me que ela tinha pacto.
Só porque ela é linda demais? Loirinha, baixinha, olhos azuis, aparelho nos dentes, uniforme do Szymanski perfeitamente colado no corpo. Que mal há nisso?
A pequena vila perece em miséria medieval, mas ela mora numa das poucas casas de alvenaria, o único sobradinho. Na minha rua, por sorte. Para os vizinhos, aquelas paredes calfinadas são como um castelo onde vez ou outra comparecem para mendigar. E o ciúme deles aumenta a cada prato de comida recebido.
Seus pais trabalham. É por isso que anda bem arrumada. Deveria ser um tanto trivial. E como dizer isso para todas as molambentas da região? Essas que acham algo fantástico nunca vê-la repetir roupa e agora a evitam por medo de alguma praga.
Comprar outro carro, viajar por uma semana, chegar de taxi em casa, enfim, tudo é motivo para que aqueles “olhos de corvos” imaginem poções na cozinha, rituais na lavanderia. Percebi que a esquina forma uma encruzilhada! Coincidência.
O cachorrinho dela morreu de velhice e o enterro foi num terreno baldio. Quem tem a língua grande, jura ter visto o animal estripado e sem coração.
O pé de amora carregado, mas as crianças dos arredores tem medo de subir no muro catar um pouco.
Nos corredores estreitos do colégio, nossos olhares se cruzaram. Dias depois mando um recado que quero conhecê-la. Depois de tanto falatório, converso com ela meio receoso, mas com um simples beijo começou o encantamento. Ficamos.
– Olha lá, piá. Isso não é natural. É algum tipo de magia – alertam os piás da vizinhança.
Ando na vila, rodeado de espectadores debruçados em portões esperando algum carro me atropelando, um raio caindo em minha cabeça.
Saio até pracinha e acompanhado de algumas colegas femininas. Nada sério. Ela vê pela janela de seu quarto. Acenei de longe. Baixei a cabeça e segui em frente meio indiferente. O que não tem remédio, remediado está.
No bar, chamo seu irmãozinho de cunhado. Ele não entende. Ela me ligou minutos depois, mas eu não estava em casa.
Marcamos outro encontro, tive de faltar.
Ela pareceu normal na virada do ano, quando ficamos pela segunda vez. Não era uma viúva negra, nem bruxa, apenas uma menina delicada que caiu nos meus joguinhos emocionais. Gosto desta estratégia de “morde e assopra”.
Ela que me aceitou. Nada foi forçado. Agora em minhas mãos, sem feitiços e sem magia, fraqueja.
O amor tudo suporta e serve de consolo.

Pilaco

           
Disseram-me que ele tinha pacto.
Ele estava sempre com as melhores roupas, a melhor aparência, em todos os lugares, sempre á frente. Trazia todas as novidades da capital. Se apresentava com uma lolita de maria-chiquinha á tiracolo. A menina mais linda do mundo.
Morava num pobre casebre de madeira, perto da Trincheira. Improvável, mas na parede de fora do mocó, uma pichação bem sacada dava mostra de que ele vivia por ali. “Não alimente os noiados”.
Em seu mundo não havia nenhum adulto responsável. Aparecia algumas vezes na pista do Tayrá. Sem treinar, andava de skate fazendo o impossível. Ninguém se comparava.
Pareceu normal na virada de ano novo, quando perdeu alguns dedos com um rojão que explodiu antes da hora.
Agora sem polegar, sem indicador, sem misticismo. Tudo jaz á explicação da lógica.