sexta-feira, 22 de março de 2013

O mundo é um palco


Em curta troca de e-mails, Samuel Brutal convidou Rico para uma visita á Igreja dos Loucos.
Despi-me da indumentária do Wilson e todo seu traço de normalidade. Esqueci-me das contas a pagar, da criança chorando, da mulher reclamando, do cachorro latindo no quintal. Vesti meu melhor boné, camiseta imensa, um tênis e uma calça larga roçando o chão. O vileiro metido a sabido, o piázinho sem caráter dá as caras. O Rico está pronto.
Raras são essas aparições em público. Nunca fui de frequentar a vida noturna, nem festas, sarais poéticos, nem sequer tenho relação com a elite cultural da cidade. Nada contra, até conheço uns poucos gatos pingados via internet. É claro, que um e-mail pensado e revisado não traduz a identidade real da pessoa, logo, não os conheço por inteiro.
No culto, lotado de pessoas ecléticas, debatemos muitos assuntos importantes como o Evangelho, filosofia avançada, produtos transgênicos e inúmeras ciladas conspiratórias de nível municipal a mundial. O que mais me chama a atenção e ver um soturno rapaz cabeludo reclamar de sua solidão.
Ele alega entender tudo que se passa á sua volta e que tenta lutar contra o emburrecimento planetário, surgindo heroicamente no meio da fábrica onde trabalha, divulgando suas teorias.
O mundo é um palco – brada apaixonadamente e em minutos está falando para o vazio. Os burros dão uma canseira, porém ele não poderia ficar quieto. Era o seu chamado vocacional.
Mas como falar sobre isso se o povo prefere a ignorância?
Como abordar um pelotão de jovens atuais descerebrados e vorazes cultuadores de electro-funk-pop-sertanejo?
Pelo menos ali, junto dos “loucos”, ele esperava ser levado a sério.
Algumas pessoas demonstram apoio ao seu desabafo. Parecia uma reunião de um grupo de auto-ajuda, algo como os eruditos-anônimos.
No fim do culto, todos se despedem e voltam para casa com a cabeça impregnada de Foucault, Truffaut, Artaud, Rousseau e lances de Nova Era.
Saí com alguns dos novos amigos para comer uma pizza. Perguntaram por skate. Não esperavam que eu estivesse de carro. Esperavam que o rádio tocasse um super rap nigga fela gringo, não um hino de louvor de igreja evangélica pentecostal. Do mano carçudo vileiro esperam qualquer fiasco. Quem sabe um arroto, um palavrão ou até um assalto. Quem imaginaria que ele não sabe representar bem o seu papel? Eu escolhi minhas próprias falas.

...

Considerando a teoria shakespeariana citada pelo cabeludo roqueiro. Discordo um pouco. Não o mundo, mas Araucária é o palco, onde milhares de personagens protagonizam seus papéis. As pessoas só fazem o que são condicionadas a fazer. O que lhes restou.
Quem consegue ser original? Sempre alguém já tomou o lugar. 
Invente ser um personagem folclórico e exótico pela praça Matriz. Terá que dividir espaço com Erne, o colono.
Quer ser bom grafiteiro, mano do hip hop? Temos o Peri, que dá conta do recado.
Roqueiro? Temos uma boa leva.
Escritor? Dentre todos, o Zanella é meu preferido.
Quer ser comediante que usa a herança do sotaque polaco? Isidório Duppa.
Pioneiros no teatro? Não dá mais.
Se a point da moçada for o posto de gasolina? Há essas horas, por aqui, está lotado.
Se a moda for axé? Temos nossos grupos. Se for street dance, estão lá os batateiros, num programa de TV de quinta categoria.
Se o esporte do momento for corrida de bicicleta, garantimos uma pista. Se for moto, damos o jeito.
Gente comportada e bonita, da direita, apreciável para fazer as graças em qualquer canto é o que mais tem.
Famílias tradicionais de encrenqueiros, secretárias amantes, jornalistas furrecas, bandidos animais, artistas botequeiros, ladrões oportunistas, taxistas linchadores, flanelinhas pedintes, políticos suspeitos, lolitas viciadas, riot girrls, hipsters, velhas putas. Não precisavam ser, mas aqui estão. É o bocado que lhes restou.
Yuppies, gente de nome e sobrenome, pastores, grupos de jovens cristãos, atletas da prefeitura, líderes estudantis, nobres professores injustiçados, camponeses inocentes. Todos foram rápidos na escolha.
Se duvidar, não tem vaga para fotógrafo de lambe-lambe.

...

Noutra manhã, enquanto aproveito pingado na panificadora, um velho senta-se no banco ao meu lado e pede um café forte. Infelizmente no balcão não há divisórias. Ele puxa assunto e em meia dúzia de palavras, estou aprendendo sobre Invasões Holandesas mais do que nas aulas de História. Seu sotaque nordestino lhe confere certa credibilidade. Acredito que ele deve ter vivenciado muita coisa em terras longínquas.
- Olha, eu vi muita coisa nesta vida. Trabalhei em muitos canaviais e fazendas no interior de muitos estados. Pernambuco, Pará, São Paulo, Bahia...
Finda meu ultimo gole. Devo me levantar e ir. Espero o desfecho. Aceno para que a balconista me dê logo a comanda.
- Seu menino, vi gente nascer, crescer, passar e morrer. No Mato Grosso, vi rapaz novo colocar as mãos em cavalo brabo e domá-lo apenas com um toque.
Sua voz rouca fica embargada. Os olhos brilham. Outros clientes percebem a estranha cena e me olham esperando uma reação. Fiquei estático na cadeira.
- Depois numa cidadezinha mineira, vi outro homem fazer o mesmo, era coisa de outro mundo. E tinha mais, viste? Quando era a época de queimar a roça, o homem caminhava até a cerca da fazenda, marcava o chão. E depois benzia o fogo, que nunca ultrapassava até o terreno do vizinho.
Faço cara de espanto por conveniência. Não há mais expectadores. Quanto á possível mentira deslavada, peço licença e sigo em direção ao caixa. Nas minhas costas ele me esfaqueia com a verdade.
- Para tudo nesta vida, há alguém que tem um dom. E quando você acha que viu tudo, sempre tem alguém melhor. Cada um de nós representa um personagem e no palco da vida não há ensaio.
Mesmo escutando um monte de lugares comuns, citações de Fernando Pessoa e frases feitas que nem eram de sua autoria, a conversa com o tiozinho me incomodou. Ele até que soube ser original. Volto para casa pensando em como me tornei um estereótipo. Será que sou uma cópia imperfeita de outro vileiro desconhecido e imitável? Tento imaginar o que fazer para ser autêntico e garantir meu posto. A parte que me cabe, não deve ser profanada por novos malandros. Ninguém mais do que eu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário