sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Camélia

Depois de dez anos, voltou a me ligar. Quer me ver. Eu que não quero mais. Mentiu várias vezes, dizendo que está solteira. Já tive de pular janela e muro alto para que o coitado da vez não nos pegasse em flagrante. Porque ela não pode sossegar? Não vê quanto problemas arrumou com essa fome insaciável? Doença mesmo. Eu tenho até dó. Expulsa da casa da irmã, na folia com o cunhado. Na sua tia, não durou um mês, se achou com o primo e saiu escorraçada. Na outra irmã mais velha, ficou de dengos com um e outro sobrinho e a inevitável briga entre eles, enquanto ela se saia de fino. Foi pros lados de Pinhais, na casa da amiga da madrinha, cuidar de criança. No primeiro piscar de olhos, acharam sua calcinha pela cama. O marido da dona não soube disfarçar. Voltou ás pressas para Araucária. Depois da tempestade foi aparecer no Bar Bonanza, bebadaça rolando pelo chão. Dormiu no relento, depois que as portas se fecharam. Ficou perambulando pela casa de algumas amigas. Não podia mais por os pés na vila. Uma renca de meninas queria pegá-la. Dormiu com o namorado de duas. Sua mãe comprou uma chácara nos confins de Contenda, mudou-se para lá. Voltamos a nos ver, mas a irrecuperável pulou a cerca do vizinho, um polacão batateiro. Explicou-me inúmeros motivos para terminarmos. Disse que estava sendo pressionada. Voltei a pé, de carona, de charrete, como pude. Abandonado no fim de mundo, na beira da estrada rural. O tal polaco fazendeiro, cego de amores, tocou a mulher de casa e chamou a guria para morar junto. No final das contas, sua mãe ficou com ele. Um rolo, uma folia danada. Não durou muito e logo estávamos aos agarros pela Praça do Seminário. Sumiu e reapareceu de cabelo pintado, rebolando na TV pela madrugada, em um programa de strip-tease. Saiu no jornal, nas triboladas. Alugou uma casa no Morro do Piolho, voltou a estudar, mas depois que a reconheceram como capa de um filme pornô, não teve mais sossego. Tentou engatar mais romances. Sem êxito. Sempre descobriam sua vida dupla. Além do pouco dinheiro, não conheceu ninguém que preste. Zanzou no Beira rio até me encontrar. Desesperada, pediu ajuda. Enroscou-se com negócio de drogas e tudo mais. Tomei coragem e fui procurar seu pai para lembrá-lo de sua responsabilidade para com ela. Ela precisava de um lar, de conselhos, de um arrimo. Apesar do som ligado no último e da roupa pingando no varal, o que daria a entender que havia gente na casa, cheguei numa má hora, o homem estava no fritz-fretz com a enteada. Sai correndo, sem reação. Lembrei-me de certa bebedeira, em que ouvi histórias de sua família, sobre incesto. Eu que pensei que fosse brincadeira, caí na real. Somos um produto do meio ambiente em que vivemos. Crédo! Com uma raça tresloucada dessas, o que esperar? Qual índole? Coitada dela. Tenho até dó. Com certeza, um nó na cabeça. Agora, atrás de um balcão de uma zoninha no pé da Serra, vem me ligar e declarar-se desimpedida. Tudo liberado. E antes não era?

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Red Araucária Party Remix



Um brega, uma bodega, uma lanchonete, uma vendinha, uma whiskaria, barraca de caipifruta, infinitos botecos.
Os acarajés pedem uma cachaça. O espetinho de gato uma cerveja. No restaurante, porções mirradas de macaxeira e mais três engradados de garrafas ao lado da mesa são o símbolo de status . Os cardápios engordurados sugerem mais álcool do que comida. 
Bêbados tombados pelos cantos não chamam atenção, pois o reboliço de pessoas no calçadão á beira da praia ao som do Arrocha é imperdível. Nem é feriado. Um dia normal, onde o povo se diverte entre as cadeiras de plástico espalhadas pela rua.
Vários restaurantes com musica ao vivo, muita diversão, bolero, baião, forró, repente. É convidativo, o cenário sempre inclui gente beijando, grogues risonhos, pinga ao cair, pinga ao levantar.
Uma viela decorada com luzes verdes e vermelhas, possui uma tenda reggae. De longe ouve-se a cantoria dos seus rastafaris. Um saxofonista toca um jazz solitário. Pede um trocado e ganha cada vez mais generosas latas de cerveja. Ele, não esmorece. Se o pagamento, não é o que espera, pelo menos tem seu reconhecimento.
No bar Recanto dos Paraenses, o som do Tecnobrega, no talo, no último. Ninguém se irrita. Todos no encoxa-encoxa
Percebo que nada disso é pecado. Pois a moçada jovem da igreja invade as ruas dançando com faixas, diabolôs, malabares, pirofagia. Parece mais uma rave ou ensaio do Circo D'Soleil. Geração saúde, de vento em popa, fazendo seu espetáculo e convidando a todos para sua missão de paz e amor. Como se os bares, não estivessem lotados de pessoas em busca da mesma coisa. 
Bem perto dali, uma pequena praça tem show gospel. Os ânimos da velharada estão em ebulição. Saem de casa, por uma causa válida, uma bagunça para afirmar sua fé. As saias longas não tiram o rebolado das senhoras crentes. Os senhores fazem acrobacias para acompanhar a canção, bater palmas, e segurar a Bíblia debaixo do braço.
Os hinos competem com o som do axé dos alto-falantes dos carros passando na via próxima.
Ao entardecer tem ensaio da banda marcial. Batuques nervosos.
Bailes privê, lual na praia, sexo na areia. Engana-se quem pensa que a esbórnia acaba por ali. Não mencionei as lojas, nos shoppings, nas lan house, nos mercados, nas escolas, postos de saúde,  clínicas, ônibus. Onde houver gente se apinhando, tem gritaria, carnaval, aquele clima de feira. Muita felicidade, para driblar a pobreza. Isso é vida.
A nordestina Gaibu é o reino da folia.

...

Como sol e lua, a antítese perfeita existe e se chama Araucária, no Paraná, o ponto mais frio do globo terrestre.
O típico exemplo deste paradoxo, está na própria palavra "folia" que para os araucarienses significa beijo roubado, namorico, paquera ou até sexo. Qualquer coisa, menos diversão. Não na Cidade-Símbolo.
Em minha fracassada vida de boêmio, todas as festividades á que compareci foram interrompidas pela polícia. Se eu estou na esquina bebendo, a policia passa e me dispersa. Se estou passeando pelo parque, o guarda me toca dali. Quando subo até o Colégio Szymanski ver o movimento do centro, a guarda municipal baixa.
É cultural. Gente á noite na rua, não presta. Viver bem é passar despercebido.
Lembro que até havia um costume antigo, de ir até a delegacia para emitir um papel de permissão para fazer festa.
A última vez que vi isto acontecer, foi quando meus amigos, Odair e Mário resolveram fazer um fêrvo. Seus pais viajaram para o Norte e a casa estava liberada. 
Houve uma pequena confusão com uma maloca na esquina que quis entrar de penetra. Num minuto, a polícia apareceu, e rasgou a papelada de autorização, dizendo que aquilo já não valia mais de nada. Me desiludi.
Seja no Jardim Industrial, Vila Nova, São Francisco, Tayrá, enfim, em qualquer canto o divertimento sempre é desmantelado pelos gambés.
Uma igreja evangélica abriu as portas numa porta de comércio no Beira Rio. Divulgaram a inauguração com placas, faixas e distribuíram panfletos pelas ruas. Quando o pastor resolveu colocar caixas de som do cubículo para fora e anunciar com megafone para a população, a coisa toda degringolou.
A música gospel rajava nos alto-falantes e não demorou sequer metade do CD para a vizinhança ligar e nossa tropa da moral aparecer. Vieram no atropelo e terminaram com a farra acústica.
Outro fato aconteceu no bairro Costeira, onde prenderam um grupo de jovens fazendo um baile de arromba, durante três dias á fio. O sarau era regado a bebidas alcoólicas e tuch-tuch no máximo volume. Se os maiores e menores de idade estivessem  reunidos numa casa de família no Réveillon, nada aconteceria. Porém, como se tratava de um muquifo de vileiros,  cobrando entrada ou consumação, todos foram para o xilindró.
Quando peões de trecho vem se alojar na cidade, aquecer o comércio e namorar nossas senhoras de idades, o que mais nos preocupamos? O barulho que podem causar. Não toleramos isso.
A única festança institucionalizada, a Festa do Pêssego, acabou anos atrás quando uma criança foi vítima de uma bala perdida. Desde então vivemos no vácuo.
Hoje apenas alguns rebeldes roqueiros comemoram. Num local adequado, com 5 vias de requisição, assinado e protocolado pela prefeitura e secretaria de cultura, agendado previamente, alvará, bilheteria e corpo de bombeiro.
É o deserto da angústia. O fim da picada.
Araucária, onde não tem festa. O marasmo é via de regra.

...

Plantão Policial: Às 01h20, a Central recebeu uma denúncia de que várias pessoas estavam consumindo bebidas alcoólicas e perturbando o sossego dos moradores da rua José Biscaia, no jardim Tropical.
Uma equipe da viatura foi deslocada até o local, efetuaram uma abordagem educativa nos indivíduos, dispersando-os.

domingo, 15 de setembro de 2013

Tchau, Pico-pico !


Ah! Lapa... Linda Lapa - assim é sua fama.
Cidade onde araucarienses são caçados como vampiros, monstros, bruxos...
Camponeses correm com tochas e forquilha á mão. O bando tem experiência em busca e esquadrinha cada cantinho minuciosamente.
Toda esquina tem uma tropa procurando o único "corpo estranho".
Treinam o ano todo para massacrar o inimigo polaco desavisado. Este é o famoso Cerco da Lapa?
Deve ser porque vivem sob o signo da guerra. A que se foi com os maragatos e a que pode vir a qualquer momento. Ainda bem que não carregam o canhão.
Tem obra do Poty? Nem vejo. Passo correndo.
Centro histórico? Uma infinidade de casinhas centenárias, praticamente todas iguais. Nenhuma com a porta aberta para me esconder.
Iguais a túmulos. Em cada cova um batateiro que se vai.
O paralelepípedo molhado, não dá aderência aos pés. Sebo nas canelas. 
Me perco num beco com três mocinhas.
Lindas loirinhas, sereias polaquinhas, anjinhas galegas, musas barrocas de olhos verdes.
Uma dessas pede um beijo. Ficamos. 
Me disseram que os araucarienses são considerados metidos, insuportáveis. Mas para elas, eu não sou assim. Eu não sou assim. Bem melhor que isso. Baita encantamento. Ecoou na minha mente.
Se bem que nunca fui eleito o mais popular. Nem tenho muitos amigos. O clima e os corações são frios em Araucity.
Não é normal?
Enquanto fico de folia com as meninas, o bando de milicos prepara a emboscada.
Corro pelo labirinto lapeano até uma rua sem saída. Em situações desesperadas, medidas desesperadas.
Invado uma casa, entro sem bater e fecho a porta á chave. Imagine o choque das pessoas á mesa de jantar, tomando sopinha, sorvendo o caldo.
Pensam que é assalto.
Os trogloditas rodeiam a casa, com clavas e machadinhas. O moço pai de família tem paciência de monge para ouvir minha história.
Compreende e paga um taxi até alguns quarteirões dali.
Longe o suficiente para eu despistá-los e sumir de vez.  Tchau, pico-pico!
Como escapo, o quanto corro, como sobrevivo e como fui parar lá,  são detalhes que logo esquecerei.
De real e duradouro apenas o beijo dela.
...
Que fiasco!
Bem feito!

Araucariense, não se engane. Se alguém te convidar para alguma festa na Lapa. Cuidado. Pode ser a guilhotina. 

domingo, 1 de setembro de 2013

Cenário


O pai esbraveja. A mãe chora. O filho mais velho sumido.
- Mulher burra! Ele tem o direito de chegar tarde. E se quiser ir na zona? Vai ter que avisar para você?
- Fique quieto. Ele não é como você.
Enquanto me escondia debaixo das cobertas e fingia o sono, ouvi toda a briga. Concordei com o pai.
Meu irmão foi chegar mais tarde. Pegou um ônibus errado e voltou do centro á pé. Nada de mais.
Nunca contei a ele o que se passou na sua ausência.
Anos depois, munido dessa eterna permissão, corri atrás de minha identidade do jeito. Não disseram para correr atrás de seus sonhos? O meu era a delinquência.
Pilhei quintais á procura de latas de tinta.
Assaltei materiais de construção - em nome da arte.
Escalei prédios.
Vandalizei bancos.
Colecionei peças de orelhões.
Surfei estações-tubos.
Estilhacei vidraças.
Ripei inocentes na saída do colégio.
Explodi banheiros e módulos abandonados.
Colori Araucária com terror e bombas de cal.
Esmurrei postes - alucinado - quebrei-os.
Depredei tudo o que era sagrado - meu nome pichado em santos e igrejas.
Cortei mudas de Araucárias no facão.
Fiz emboscadas - roubei apenas um pé do par de tênis - por maldade.
Ateei o fogo que extinguiu a inocência dos piás da vila. Brincavam de bolinha de gude, caçar passarinho, nadar no ribeirão, até que proporcionei a luta, a aventura, as gangues, o espírito grupal, as guerras contra a caterva da Costeira.
O rancor dos jornais e das instituições, o tempo sara as feridas merecidas.
Tudo por um bem maior. Quantos não se inspiraram nos meus atos? Apelo para valores mais altos. Esta cidade precisava de agitação. Araucária, como sempre, muito careta. As conseqüências justificam o malfeito. Eu protegi aqueles garotos de levar uma vida insossa.
Meu lado racional fracassava contra os impulsos de rebeldia. Desci até becos abissais e briguei com todas as suas criaturas.
Era o saci! As fantasias de onipotência só pararam quando fui baleado por "leões de chácara".
Foi de raspão. Uma bela cicatriz para a coleção.
Mudei meu modus operandi. Escrever transmite mais idéias, do que pedra contra vidraça.
E meu irmão achou que tive coragem de arriscar tanto.  Ele não sabia que apenas fui vítima das circunstâncias.            Afinal, neste mundo, se não preciso contar, então é permitido.
Poupei-o de fazer um monte de besteiras.
Citando Nietzsche "O medo é o pai da moralidade".
Dois irmãos, eu era o órfão.





sábado, 27 de julho de 2013

Araupizza


Araucariense monta uma pizzaria pequena. Logo lota o cubículo, sem espaço para tanta gente.
Todos se acotovelam em corredores estreitos, que mal passam as crianças bagunçeiras em sua correria.
Duas famílias animadas comemoram a formatura da filha mais velha. Se acomodam perto da tv, no caso de ter que conversar.
O garçom magrelo vem anotar o pedido (antes que se arrependam). Depressa, volta com uma pilha de pratos e talheres.
Pede para que o pessoal distribua até chegar ao último cliente. Tudo passa de mão em mão.
A coitada da avó é a ultima da fila e recebe o prato manuseado por parentes de higiene duvidosa.
Muitas marcas de polegares, alguns cílios e cabelos depois, chegam os copos. Faltou talher para um e outro.
E é neste rumo, neste ritmo: Tem dias que falta queijo, outros tomate, ás vezes orégano.
Só não falta cliente. Todo mundo fala mal, mas ninguém tem coragem de procurar outro lugar.
Deus me livre, falar em mudar de ares e sair da cidade.
- Seco da nhanha, quer ser granfino, é? Ninguém aqui é rico, viu?

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Prova de amor


Mulher para toda a obra. Para o que der e vier.
Sente o drama do bêbado e vai buscá-lo na gandaia. Desde sexta-feira sem voltar para casa.
Roda o centro. Fuça o Bar do Emídio e o Bakanas. Uma volta na Praça, desce até a Rodô.
Até levou umas cantadas. - Ai, se não fosse o enrosco.
De folia com o sem vergonha, está grávida de três meses.
No Operário, conta a história triste e consegue entrar sem pagar. Dá um giro pelo salão e nada.
Enfrenta o medo e pergunta dele pros maloqueiros na pelada da cancha do Seminário.
Quase sem esperança, com o pé calejado de tanto andar. Encontra-o  jogando sinuca no Bola de Ouro.
Traz de arrasto. O boteco não se mete.
Descem a ladeira da Bertolino Pizzato. A candanga de cara amarrada, se equilibra no cano da bicicleta.
Ela bota fé na boleia do camarada. Confia sua vida.
O magrão vindo de gole e a magrela sem freio.
São, ele não é tão mau. Lembra o caminho de casa.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Araucária Zero Grau


Araucária anda muito careta e hoje amanhece no silêncio.
Nenhuma pichação na Trincheira.
Nenhum caminhoneiro reclama da demora em frente ás empresas de gás.
Nenhum baile animado na colonia Cristina, nem novena no Colégio das Irmãs.
Nenhum bêbado atropelado na saída do Bar Texas.
Ninguém se quebra de skate na pista do Tayrá.
Ninguém pula o muro do Szymanski. Ninguém espreita as meninas do Ibrahim - Onde estão as meninas?
Ninguém é encontrado boiando na represa, nem nas margens do rio. Ninguém para reconhecer.
Nenhum piá pega rabeira nos ônibus.
Não há mais assaltos na Trincheira.
Não tem roque no Morro do Piolho.
Não há briga entre colégios. Ninguém cruza os portões do Maria Luiza, nem Marcos Freire.
Nem tarado cochicha, nem criança grita no matagal ao lado do Werka.
Nem sinal de maloqueiros no famoso Escadão do Dalla Torre.
Sem golpe do Paco.
Sem ciganos pela Câmara.
É o paraíso na Terra das Araucárias.



A cidade acorda extremamente fria.
Nesta manhã nenhum corpo é encontrado na estrada rural.
Apesar do frio, ninguém morre congelado debaixo da ponte do Iguaçú.
Pelo beco do Maranhão o esquisito não está mais lá querendo me mostrar um bagulho.
Os sofridos peões de obra não vagam pela praça perguntando por emprego.
As crianças não estão nas linhas de frente das passeatas.
A poeira e areia da rotatória do Jardim Maranhão se acumula, sem ninguém varrer.
A Vila Verde curitibana não apedreja mais os nossos Ligeirinhos
Neste dia, perdemos a sintonia da Radio Iguaçú.
Desta vez, ninguém morre no Tupy. Sequer há alguma ameaça por arma branca.
Os velhos nomes enfim estão fora do poder. E todos os seus cargos comissionados.
É o Paraíso na Terra dos Pinheirais.



É o paraíso da Terra das Araucárias. Abaixo de zero grau.
A neve cai, no entanto, não há ninguém para festejar.
Ninguém vê o lago congelado do Parque Cachoeira. Quem me dera deslizar sobre ele.
Desde a Mulher Elefante até a bela modelo polaquinha, todos estão num lugar melhor sem angústia e sem folia.
se foram os desentendimentos, então ninguém mais leva corridão ao passar pelo Bairro do Costeira.
Simples assim.
Se vão os desejos, então ninguém mais briga pelo poder nas ruas mequetrefes do Jardim Industrial.
Bravo!
Posso julgar a todos como se fosse maus?
Não. A fatalidade não sonda o coração.
A cidade é riscada do mapa.
O inferno são os outros. Os outros lugares.
O recomeço se trata do paraíso em uma nova Tindiquera.



Pessoa cai do Ligeirinho, mecânico serra as pernas de cliente devedor, um carro Caça-fantasmas é roubado e queimado, putas rifadas no Jardim Califórnia, inocente morre em plena Festa do Pêssego!
A cidade bomba-relógio chegou ao fim.
Para que mais araucarienses?

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Toró Azul Petróleo


Na terra da batata, foi o maior bafafá 
Toró ou tornado. No cabelo um afuá
Furacao, vendaval, redemoinho, ciclone
Veio TV, bombeiro, Defesa Civil, GM, os "home"
O peão ficou rodado com as voltas que o mundo dá
A pisa dos céus. Mais um indigente na sarjeta.
Fui rogar pra santinha polaca preta 
Eu que não rasgava nada, tomei uma atitude porreta
No imenso portal azul, ajoelhei e me pus a rezar



Em Abaetetuba, não tinha uruca.
Tivesse eu ficado na janela de butuca, 
o vento que sopra na minha baiúca
Putistanga! Não teria feito tanto estrago.
Eu vim de longe pra entrar na parada.
A parada foi outra. Gente vizinha desalojada.
Nem entra, nem sai no Shangri-lá, Serra Dourada.
Num piscar de olhos, foi se embora o meu telhado



Logo tinha parente do Pará me ligando
Viram no jornal, árvore e poste quebrando  
Égua! O susto do incalculável dano
passou quando atendi o celular.
Queriam saber do Katrina em Araucária
Furacão Catarina se bandeou pr'essas área?
Meu nome na latrina, a vida precária
Papa-chibé, isto aqui não é o lugar. 



Saudade da minha lancha vuadeira
A pesca tranquila no barquinho de madeira
Agora, abandonado no fim das três ladeiras
Manoel Ribas, Bertolino e Archelau, 
Faltou São João, Vaquejada, Boi Bumbá 
Este povo não tem o que comemorá
Eu vi o frio violento. E o toró que só faz torá
Onde o vento faz curva afinal


Leite quente dói o dente, oxênte! 
Pé d'água Azul Petróleo leva tudo pela frente
Pessoas vagam pela rua, como zumbis inconscientes
té leso? Bora logo. Melhor sumir se aguará
Cabos caídos, Fios de luz, muito trololó
Tudo emaranhado. Minha vida que deu um nó 
Prefeitura me dá uma mão, mas eu me sinto só
Prefiro mil vezes o Seridó, sem tempestade nenhuma para reclamar



Me deram telha, tijolo e colchão...
Me deu na telha. Além  do teto e perdi o meu chão
Belezal! Minha saída é a demissão. 
Aguardar a quita do gato chegar.
Será uma carreira daqui para o Norte.
No trecho, á mercê da própria sorte. 
Espero não cair neste mesmo golpe
Quero distância deste tal Paraná.

sábado, 25 de maio de 2013

Andaime

Mil peões. Por todos os lados. Pedreiros sobem e descem pelo arranha-céus. Cada dia mais alto e mesmo assim, não se compara ao pedestal em que me coloquei. Padeço por falta de afinidade.
Eles podem ser boas pessoas, amáveis, formidáveis mas isto não me toca. Ser é ser percebido. Sou apenas um corpo que vaga pela obra a empilhar tijolos. Constroem andares e mais andares. Minha é a serventia.
Me pergunto quantos deles deram uma guinada no rumo da vida?  Quantos não pertencem a esse lugar? Quantos estão perdidos no canteiro de obras?
A vida não se resume a isto, mas quantos destes leram o Manual Prático de Delinquência Juvenil? Quantos andaram de skate? Odeiam surf? Quantos apreciam arquitetura pós moderna? Com quem converso sobre design de móveis?  Tem alguma ideologia? Sabem o que digo? Escrevem crônicas? Sabem diferenciar Noir de Nouvelle Vague?  Qual deles sonha em conhecer Gibraltar? Voar de balão?
Quem é um vexilologista amador? Sabem o caminho das Indias no mapa? Assistiram o Interestela 5555? Faculdade? Terceiro grau? Trevisan, Oiticica, Cimples, Dose, Hakim Bey, Banksy, O Uivo, nada?
'Que passaram solitários pelas ruas de Idaho procurando anjos índios e visionários'
Meu universo de referências sequer é capaz de assentar um tijolo. A informação absoluta que é igual a um resultado nulo. Dói entender. Perco palavras a cada minuto.
Mesmo que ler Kafka faça mal á meu futuro operário, não posso demonstrar qualquer resquício de insatisfação. Trabalhar sem respirar. Prego que se destaca é martelado. Questionar ou reclamar são sinais de desajuste. Uma podridão a extirpar. Serei forte.
Aqui, o conhecimento é lixo. Engana-se quem pensa ser poder. E a vida vai se afunilando.
O mundo sorri em marmitas, pagamentos e prostíbulos. Triste, escapo do vácuo e disfarço um sorriso. A cigarra  dissimuladora e as formigas.
Entre argamassas e argonautas, me peguei apelidando cada capacete por letra grega. O espelho nega a minha presença.
Resta-me esmaecer o léxico, sintonizar outro canal. Cada lembrança é disrupta, desconexa, contusa, confusa. Apago as pegadas, limando cada lembrança.
- Ei, primo, não perca o prumo. Traga o cimento e a areia...
- Sim.
Projeto Manhattan, Projeto Manada, dervixes, sufis, pichadores, tegueiros, Pictoplasma, Toy Art, Provos, Frank Viola, Genizah Virtual, Zâmbala, Zanzibar, Tanganica, Quinto Andar, Guernica, Cubismo, Dadaísmo, Rococó, Movimento CoBrA, Arauzine, Construtivismo Russo, Serpieri.
- Seu menino, me alcance a colher e a desempenadeira.
- Sim.
Celacanto provoca maremoto, Juneca, Japa Kamikase, Perê, Tiri, Garage House, Batata House, Loft Lona, Mercado Mundo Mix, Atari Teenage Riot, a grande fome irlandesa, a grande fila do leite, Carne Crua, a dama do lago, a dama do Largo, pinhão, leite quente, banana da terra...
- Bóra, colocar este azulejo ali. Fica de olho no esquadro.
- Sim.
Monge da Lapa, Contestado, Ilha do Mel, Ilha das Flores, JDilla, Rap Francês, Reggae Argentino, Rock Japonês...
Esvazio a mente. No presente, atento á laje. Tento meditar mirando a parede rebocada. Chapiscos tem formatos de galáxias.
Sozinho, atrás do concreto.
Sim, até sumir.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

A garota de sempre


Eu ainda acreditava em horóscopo:
- Cuidado com pessoa desequilibrada. Sua vida passará por uma montanha russa emocional. Dificuldades no campo sentimental.
Fuja de problemas.
Como o astrólogo poderia ser tão específico? A previsão deveria ser furada, mas então conheci a Two.
Lembro da tarde chata de domingo com tempo brusco. Sem saber o que fazer dentro ou fora da danceteria. Solito, sem namorada, me apresentava o mais largado possível na pista de dança. Na pior, mal trajado, cabelo emaranhado, com a barba por fazer e sem querer agradar a ninguém. A caminho de um porre, contando moedas para a próxima caipirinha.
Pensando no fim de meu ultimo relacionamento, evitando outros passos mal dados, resolvi fazer uma experiência: Ficar com alguém sem me envolver sentimentalmente. Desta vez eu seria o crápula manipulador de destinos.
Vi uma menina bonitinha passando no salão e fui seco. Sem aquela enrolação de troca de olhares, recadinhos e perseguições.
É claro que meu padrão não é baixo. Ela não era qualquer uma. Foi algo de sopetão e que deu certo.
Bons tempos de maré alta.
Two era uma exótica curitibana clubber perdida no meio da maloqueiragem de Araucária. Ruivinha e mirradinha. Sua pulseira neon era uma luz no fim do túnel naquele salão mal iluminado.
Ouvi ela falando algo inusitado para sua amiga:
- Eu? Ficar com o Rico? Nossa! Quem imaginaria?
Se a frase fez parte de alguma estratégia, eu caí de cara na armadilha. Quem resiste a uma massagem dessas no ego?
Sou totalmente leigo nesses joguinhos românticos.
De repente, a vi com outros olhos. Virou simpática, bacana, perfeita, possível amor de minha vida inteira.
Aquelas pulseiras coloridas em excesso, o tênis plataforma, o óculos de acrílico passaram de estranho á maravilhoso num piscar de olhos.
Ficamos de papo madrugada adentro. Goa? Goa! Goa. E Techno daqui, Trance de lá. Tínhamos muito em comum.
Saímos sem destino certo, fazendo ziguezague pelas ruas no centro da cidade, até que paramos nos fundos do Pronto Socorro.
Por sorte, encontramos uma porta aberta em um pavilhão recém-inaugurado. O assunto acabou.
A entrada da Lua estava na direção do signo de Touro. Vênus foi o planeta regente. Com Libra ascendendo, houve uma segunda e terceira casa. E eu pensava que ela era Virgem.
No dia seguinte, por coincidência, pegamos o mesmo ônibus para Curitiba.
Sentou ao meu lado e apresentou-se desta vez como Fabiana.
Roubou-me um beijo e deixou ver sua agenda. Escreveu coisas ótimas de nosso encontro. Elogiou-me demais em poucas linhas.
Convidou-me para acompanhá-la num rolé pelo centro. Eu aceitei a aventura e enforquei o dia de trabalho.
Oportunidades assim, são raras. Bem melhor do que ficar enfurnado no escritório.
Fomos á alguns lugares descolados. Doctor Discos, Omar Shoppig, Sindicate, Ruínas e uma pegação na Circus.
Me apresentou para um monte de gente doida. Insistiu em pagar a conta. Que amor!
Ela disse que foi em retribuição ao "namoro".  A palavra é meio forte, mas gostei de sua iniciativa.
Essa menina parecia ser diferente das outras. Era interessante e decidida. Bem padrão, como diria a maloca araucariense.
Na volta para a cidade-símbolo, contou-me detalhes de seu passado. Muitos traumas e decepções. Até houve um caso inacreditável de suicídio de antigo noivo. Seu carro despencou de um precipício em alta velocidade, mas no ultimo instante, ela abriu a porta e conseguiu pular. Cena de fim de novela com explosão e tudo mais.
Seu ultimo rolo era um vileiro do CIC que vivia falando mal de mim. Nem sei quem é, mas em todo caso, me vinguei ao ficar com ela.
Combinamos encontro para outro fim de semana.
Quando cheguei em casa, recebi dela uma mensagem amorosa por telefone. Fiquei feliz por tanta demonstração de afetividade.
Confiro nas páginas do jornal o horóscopo - Gemêos: aproveite seu tempo com a pessoa amada.
Correto.
No dia seguinte, ela me ligou chorando, dizendo que fez besteira, pedindo desculpas de uma traição. E eu nem sabia de nada.
Ela mesma derrubou suas pranchas e eu larguei os betes de vez.
Não entendi. Ela afirmava que nosso relacionamento era tão importante e fez isso? E aquele choro descabido?
De minha parte também houve uma escapadela, talvez duas ou três.
Como não prometi nada e não me derreti de amores em lindas declarações, não houve remorsos.
Ali eu percebi, que friamente consegui controlar meu coração. Assim não me feri. Simples e pragmático.
Tive medo dessa relação tão mecânica com esse resultado tão previsível como a órbita dos planetas.
Entendo que a curiosidade pelo que é novo fascina. Depois de um imenso marasmo, não em apenas uma semana. Não se troca pessoa, tão rápido como se troca de roupa.
Ela não estava preparada para dizer "não" em meu favor. Como demorou em decidiu que direção tomar, acabou perdida.
Quem sabe ela até poderia me cativar. Desperdiçou a chance á toa. Eu não quis voltar, pois nem fui.
O horóscopo dizia sorte no amor. Ué? Credo.
Fui até o serviço dela, para conversarmos como amigos. Perdi a viagem, pois ninguém ouviu falar de Fabiana. Havia uma Teresa e uma Isoleide.
O segurança do local disse que uma recepcionista esquisita foi demitida na semana passada por ser pega em flagrante delito em pleno ato sexual. Poderia ser ela.
Ao perguntar das presilhas no cabelo e roupas multi-coloridas de vinil, veio a confirmação. Já o nome era outro: Amanda.
A empresa aprendeu a lição de nunca mais contratar recepcionista para o turno da noite.
Abandonei o horóscopo. Não conto com presságios, nem espero bons agouros. Agora minha fé é outra. Prefiro apenas torcer para que dê certo e investir na relação. Tem dado certo.
Quanto a Two, nunca soube quem era na verdade. Veio fácil, pareceu especial e tornou-se mais uma de tantas que passaram. Aquela garota de sempre. Um nome a ser esquecido.
Hoje, por via das dúvidas, ao conhecer alguém, peço para ver sua carteira de identidade.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Campo Santo

O mundo muda constantemente diante de nossas escolhas. Cada gesto, palavra e pensamento são decisões que não voltam mais. Tentamos decifrar um quebra-cabeça eterno, em que jogamos apostando na sorte de cada minuto. Uns acreditam na fé, outros em planos, mas na vida por vez ou outra hesitamos ao questionar sobre algo do que poderia ter sido em deslumbramentos otimistas. Meras suposições supérfluas, em que traçamos ações e reações para chegar a um resultado intangível.
Se eu não fizesse...Se eu não desistisse...
Eu seria outra pessoa.
Não me preocupei de ela ser filha do coveiro, nem de morar ao lado do cemitério. Pior que isso era descobrir suas mentiras. Ela não trabalhava no shopping, seu pai não era bancário, nem mesmo seu nome era aquele. Mesmo livre do fardo da vergonha, quando toda a verdade foi posta, fatos omitidos corroeram minha confiança. Era como admirar um lindo felino, sem lhe dar as costas.
Mesmo com tantos motivos escarrados para eu cair fora, em certos momentos a paixão subjugava a razão. Se meu orgulho não tivesse me privado dela, hoje eu seria parte daquela família, aquele pandemônio. Os anos passariam, eu me habituaria com o ambiente, e veria alguma beleza por detrás de cada copo de pinga de sua mãe, seu pai, irmãos, dela e de nossos filhos. As brigas seriam divertidas, não existe amargor no churrasco seguinte.
Aceitaria de bom grado a oferta de seu pai. Ela me convenceria de que ajuda-lo seria algo rentável e dispensaria todas as minhas ambições de um futuro passado possível. Sem estratégias, diplomas, aparências: "Sete palmos abaixo".
Logo meu sogro se aposentaria, restando o velho Opala vermelho cor sangue e uma tradição a iniciar. Apresento a todos o mais novo coveiro da cidade: eu mesmo, o piá sem caráter. Papa-defuntos capaz de propor aos chorosos familiares a melhor morada eterna, azulejada em arquitetura fúnebre moderna de Art Nouveau inspirada em quadros de Klint.
E pelo que me conheço um pouco bem, nenhuma lenda de fantasma seria horrenda o suficiente para espantar e me fazer deixar de caçar profanadores necrófilos e ladrões de placas de metal, munido de garrucha e balas de prata.
Túmulos bem cuidados, lírios de plástico, velas que não se apagam. Um universo cru e do tamanho de um terreno cheio de ossos e corpos em putrefação.
Isso se eu não fosse isso que sou...


* Texto retirado de "CRÔNICAS ARAUCARIENSES"  Copyleft 2010 - Rico

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Pinhão no Acarajé


O baiano tenta conquistar uma polaquinha. Aprendeu que as meninas araucarienses mostram-se difíceis
com peão de obra. Por isso, reserva um mês á pulso , ou melhor, á fio, para aprender o sotaque do leite quente.
Calado até passa por piá. Deixou a bermuda e o chinelo em casa, por precaução.
Convida a loirinha delicada para comer uma água, ou melhor, tomar um chopps no Bakanas.
Assim, que se sentam á mesa, ele reconhece de longe um colega de trabalho e o já vai gritando de longe:
- Colé de mêrmo, pivete!
Ele percebe a mancada que deu e explica que está imitando o amigo nordestino. Mas fala com malemolência tão
típica, que é difícil acreditar.
Deixa a menina á vontade para que ela explane sua vida inteira. Ele todo ouvidos, não dá pistas de sua procedência.
O garçom vem com a conta.
- Oxe! oxe! oxe! Aí, é barril!!!
- O que houve? - ela pergunta espantada com sua esquisita interjeição.
O rapaz disfarça, desconversa e engole a seco duas cervejas somadas a mais. Não quer fazer barraco, não quer
rodar a baiana, logo no primeiro encontro.
Ele propõe um passeio a um lugar mais calmo, uma volta á pé pelo centro. Logo na saída do bar tropeça no calçamento solto.
- Fio do cabrunco!
- De onde do interior você disse que veio mesmo? - desconfia a moça.
- Camaçari. É uma cidade pequena que fica próxima de Londrina.
Ela se despede mais cedo do que o previsto quando o ônibus aponta na esquina.
Como dizem na obra: "todo castigo para peão é pouco".

quarta-feira, 27 de março de 2013

O bárbaro no volante

Disseram-me que ele tinha pacto.
O carro capotou na Rodovia do Xisto, virou um monte de sucata como lata de refrigerante amassada. O motorista sobreviveu milagrosamente sem nenhum arranhão. Dizem que em meio aos destroços recebeu uma funesta visita. Ele prometeu um resto de vida de maleficências, caso fossem lhe dado mais anos. Se houve preço eu não sei.
Quem testemunhou?
Bem, conheço o amigo do primo terceiro e o tio do vizinho que juram que é verdade.
Depois que reformou seu Escort, o transformou em arma mortal. A cores vermelha e preta na lataria eram algo realmente sugestivo.
Descia a ladeira á milhão, no galeto. Tirando fina de qualquer pedestre. Quando ele apontava no começo da rua, as rodinhas de maloqueiros pelas esquinas se recolhiam. Crianças pulavam muros, coitados dos velhinhos próximos do meio-fio.
A calçada nada significava se ele não simpatizasse com a pessoa. E a gargalhada macabra atrás do volante mostrava que ele não tinha amigos.
Pulava os bueiros com gosto, as lombadas com raiva. Atrás do poste ou do ponto de ônibus eram lugares seguros.
As denuncias da vizinhança de nada adiantavam. A polícia tinha mais com o que se preocupar. A sorte era dele, que rasgava as ruas da Cidade-Símbolo com o pé mais pesado que se viu.
Crianças do bairro eram educadas a não falar com estranhos e tomar cuidado com o barbudo barbeiro. Andar na contra-mão dos veículos para melhor avistar o louco em seu vôo baixo.
Num destes dias de terror, me arrisquei demais indo a pé até a frente do colégio perto de casa para falar com certa menina bonitinha. Recebi alguns recados e algumas cartinhas amorosas dela e fui conferir pessoalmente.
Apesar da timidez, das poucas palavras, não demorou muito para acontecer nosso primeiro beijo, que foi interrompido aos berros por sua mãe surgindo furtivamente ao nosso lado.
Fiquei tão surpreso com a situação que fiquei sem reação. Ela não me alcançaria na corrida, mas e a fofoca que fariam sobre isso? Corro de fantasma, de polícia, do bando inimigo, mas não de mulher com perna varizenta, sozinha e desarmada.
A dona me levou de arrasto á sua casa, a uma quadra dali. Fui por obrigação. O pai chegaria ao meio-dia para almoçar e então teríamos a fatídica conversa.
Poderia ser tudo uma armadilha. A moreninha marcou o encontro e poderia também ter avisado sua mãe para forçar o namoro. É difícil não se enredar nestes joguetes.
Fui convidado a entrar e me acomodar no sofá da sala. Couro gelado. Ela não sentou ao meu lado, mas preferiu outra poltrona. Imaginei que ela seguraria minha mãozinha trêmula para dar-me forças neste momento tão difícil. Na minha mente ensaiei diversas teorias que explicassem como minhas calças largas e caídas eram sinônimos de pessoa idônea, honesta e trabalhadora.
Nos porta-retratos na estante, reconheço aquele cavanhaque. Faltava chifre e rabo para ser pior. O pai dela era o temido
O homem era perigoso para pedestres desconhecidos. Imagine o que faria com quem ameaçasse tirar seu “bebê” de casa.
A janela era alta demais para pular. A porta fechada a chave.
Na TV, a cada intervalo da programação anunciam a reprise de “A morte pede carona”.
E eu estava ali encurralado.
O chá de cadeira foi longo. Duas horas de atraso e nada do homem.
Ouvi falar que todo dia ele percorre sete léguas fazendo suas maldades na direção. Não era o momento para perguntar disso. Quem sabe daqui uns anos.
A mãe telefonava a cada meia hora para saber do esposo.  O carro enguiçou.
- O namoro de vocês não tem problema. Sei que não é para sempre
Ela poderia estar falando da inconstância dos relacionamentos atuais ou de meu fim próximo com o corpo moído e estirado debaixo das rodas.
Para não perder viagem, também cansada de esperar, a senhora fez suas ordenanças. Eu deveria comparecer todo domingo á tarde, apenas este horário e namorar ali no sofá frio, junto com pai e mãe. Nada de se agarrar pela rua. Passeios a cada duas semanas e apenas se acompanhado da irmã mais nova. Voltar para casa antes de escurecer. Ela aceita apenas flores e bombons como presentes. Não se deve beber, nem fumar, nem escutar música imprópria. Beijo no rosto. Sem ousadias. Para tudo pedir permissão.
É claro que concordei em voz baixa, sem sequer encará-la. Menti forçosamente. Eu mal conhecia a namorada, não valeria tanto esforço.
Do jeito que ela me pintou, pelos deveres e obrigações, parecia até que eu era algum bandido aliciador de menores.
Esperava aquelas perguntas básicas. Nenhuma das duas quis saber nada de mim. Sequer meu nome e sobrenome.
Sai ileso, sem nem se despedir direito. Correndo como o vento para não atravessar o caminho do barbudo.
Fiquei duas semanas fora de circulação. Obriguei-me a ficar incomunicável dentro de casa para acabar com o rolo. Bem feito para mim, que fico de folia com essas gurias novinhas.
Enquanto um cargo pesado me era dado, encontrei a danadinha pela madrugada na farra.
Vi que o homem era normal. Se tivesse pacto, seu tanque de guerra não quebraria. O selvagem motorizado estaria adiantado nos fatos. Que presa seria mais fácil do que eu de mãos atadas no sofá da sala?

sexta-feira, 22 de março de 2013

Bonde dos Araucarienses


- Lá no Rio, o bagulho é feroz. Neguinho traficante anda de escopeta pelas ruas. Vi doido se exibindo com espada ninja. Eu era moleque e via altos corpos estirados. Bala perdida é mato. Sem falar que tem que saber entrar e sair, blá, blá, blá...
E o que o piá vai dizer? A coceira? As urtigas pisadas na lateral do campinho da Costeira? O chutão do perneta, que fez a bola sumir no meio da roça?
Aquelas monótonas tardes ensolaradas, tornaram se a exceção, num mundo tão violento e exótico.
No silêncio, ele tenta fazer amizade. Sequer consegue simpatia.

O que é que Araucária tem?


- O que é que se pode esperar de um lugar onde não fazem vatapá, sarapatel, caruru? Ah! Terrinha miserável da gota serena! Que frio arretado! Afêmaria! Que lugar é esse, onde até o pessoal é frio! Ninguém responde o meu “bom dia”! Ninguém conversa de nada de bom. Que gente besta!
O chefe esbraveja, enquanto os funcionários de cabeça baixa, apenas refletem sobre sua desgraça. Nenhum tem coragem de explicar que é assim mesmo.  Sobre Araucária, já dizia Carmen Miranda: “Ai, quem não tem balangandã”.

Fuzuê


- E o hoje tem?
- O quê? Hã?
- Bora pivete, bora lá jogar um baba. Depois, comer uma água lascada. Hoje, vamos largar o doce.
- O quê?
- Venha cá, galego. Por acaso você é irmão? É evangélico.
- Não.
- E porque é quietão deste jeito? Tá agoniado? 
- Não. Sou só araucariense.
- Logo vi. Tô vendo mesmo, que você é um cara sem quatchá, quatchá!
                      

O mundo é um palco


Em curta troca de e-mails, Samuel Brutal convidou Rico para uma visita á Igreja dos Loucos.
Despi-me da indumentária do Wilson e todo seu traço de normalidade. Esqueci-me das contas a pagar, da criança chorando, da mulher reclamando, do cachorro latindo no quintal. Vesti meu melhor boné, camiseta imensa, um tênis e uma calça larga roçando o chão. O vileiro metido a sabido, o piázinho sem caráter dá as caras. O Rico está pronto.
Raras são essas aparições em público. Nunca fui de frequentar a vida noturna, nem festas, sarais poéticos, nem sequer tenho relação com a elite cultural da cidade. Nada contra, até conheço uns poucos gatos pingados via internet. É claro, que um e-mail pensado e revisado não traduz a identidade real da pessoa, logo, não os conheço por inteiro.
No culto, lotado de pessoas ecléticas, debatemos muitos assuntos importantes como o Evangelho, filosofia avançada, produtos transgênicos e inúmeras ciladas conspiratórias de nível municipal a mundial. O que mais me chama a atenção e ver um soturno rapaz cabeludo reclamar de sua solidão.
Ele alega entender tudo que se passa á sua volta e que tenta lutar contra o emburrecimento planetário, surgindo heroicamente no meio da fábrica onde trabalha, divulgando suas teorias.
O mundo é um palco – brada apaixonadamente e em minutos está falando para o vazio. Os burros dão uma canseira, porém ele não poderia ficar quieto. Era o seu chamado vocacional.
Mas como falar sobre isso se o povo prefere a ignorância?
Como abordar um pelotão de jovens atuais descerebrados e vorazes cultuadores de electro-funk-pop-sertanejo?
Pelo menos ali, junto dos “loucos”, ele esperava ser levado a sério.
Algumas pessoas demonstram apoio ao seu desabafo. Parecia uma reunião de um grupo de auto-ajuda, algo como os eruditos-anônimos.
No fim do culto, todos se despedem e voltam para casa com a cabeça impregnada de Foucault, Truffaut, Artaud, Rousseau e lances de Nova Era.
Saí com alguns dos novos amigos para comer uma pizza. Perguntaram por skate. Não esperavam que eu estivesse de carro. Esperavam que o rádio tocasse um super rap nigga fela gringo, não um hino de louvor de igreja evangélica pentecostal. Do mano carçudo vileiro esperam qualquer fiasco. Quem sabe um arroto, um palavrão ou até um assalto. Quem imaginaria que ele não sabe representar bem o seu papel? Eu escolhi minhas próprias falas.

...

Considerando a teoria shakespeariana citada pelo cabeludo roqueiro. Discordo um pouco. Não o mundo, mas Araucária é o palco, onde milhares de personagens protagonizam seus papéis. As pessoas só fazem o que são condicionadas a fazer. O que lhes restou.
Quem consegue ser original? Sempre alguém já tomou o lugar. 
Invente ser um personagem folclórico e exótico pela praça Matriz. Terá que dividir espaço com Erne, o colono.
Quer ser bom grafiteiro, mano do hip hop? Temos o Peri, que dá conta do recado.
Roqueiro? Temos uma boa leva.
Escritor? Dentre todos, o Zanella é meu preferido.
Quer ser comediante que usa a herança do sotaque polaco? Isidório Duppa.
Pioneiros no teatro? Não dá mais.
Se a point da moçada for o posto de gasolina? Há essas horas, por aqui, está lotado.
Se a moda for axé? Temos nossos grupos. Se for street dance, estão lá os batateiros, num programa de TV de quinta categoria.
Se o esporte do momento for corrida de bicicleta, garantimos uma pista. Se for moto, damos o jeito.
Gente comportada e bonita, da direita, apreciável para fazer as graças em qualquer canto é o que mais tem.
Famílias tradicionais de encrenqueiros, secretárias amantes, jornalistas furrecas, bandidos animais, artistas botequeiros, ladrões oportunistas, taxistas linchadores, flanelinhas pedintes, políticos suspeitos, lolitas viciadas, riot girrls, hipsters, velhas putas. Não precisavam ser, mas aqui estão. É o bocado que lhes restou.
Yuppies, gente de nome e sobrenome, pastores, grupos de jovens cristãos, atletas da prefeitura, líderes estudantis, nobres professores injustiçados, camponeses inocentes. Todos foram rápidos na escolha.
Se duvidar, não tem vaga para fotógrafo de lambe-lambe.

...

Noutra manhã, enquanto aproveito pingado na panificadora, um velho senta-se no banco ao meu lado e pede um café forte. Infelizmente no balcão não há divisórias. Ele puxa assunto e em meia dúzia de palavras, estou aprendendo sobre Invasões Holandesas mais do que nas aulas de História. Seu sotaque nordestino lhe confere certa credibilidade. Acredito que ele deve ter vivenciado muita coisa em terras longínquas.
- Olha, eu vi muita coisa nesta vida. Trabalhei em muitos canaviais e fazendas no interior de muitos estados. Pernambuco, Pará, São Paulo, Bahia...
Finda meu ultimo gole. Devo me levantar e ir. Espero o desfecho. Aceno para que a balconista me dê logo a comanda.
- Seu menino, vi gente nascer, crescer, passar e morrer. No Mato Grosso, vi rapaz novo colocar as mãos em cavalo brabo e domá-lo apenas com um toque.
Sua voz rouca fica embargada. Os olhos brilham. Outros clientes percebem a estranha cena e me olham esperando uma reação. Fiquei estático na cadeira.
- Depois numa cidadezinha mineira, vi outro homem fazer o mesmo, era coisa de outro mundo. E tinha mais, viste? Quando era a época de queimar a roça, o homem caminhava até a cerca da fazenda, marcava o chão. E depois benzia o fogo, que nunca ultrapassava até o terreno do vizinho.
Faço cara de espanto por conveniência. Não há mais expectadores. Quanto á possível mentira deslavada, peço licença e sigo em direção ao caixa. Nas minhas costas ele me esfaqueia com a verdade.
- Para tudo nesta vida, há alguém que tem um dom. E quando você acha que viu tudo, sempre tem alguém melhor. Cada um de nós representa um personagem e no palco da vida não há ensaio.
Mesmo escutando um monte de lugares comuns, citações de Fernando Pessoa e frases feitas que nem eram de sua autoria, a conversa com o tiozinho me incomodou. Ele até que soube ser original. Volto para casa pensando em como me tornei um estereótipo. Será que sou uma cópia imperfeita de outro vileiro desconhecido e imitável? Tento imaginar o que fazer para ser autêntico e garantir meu posto. A parte que me cabe, não deve ser profanada por novos malandros. Ninguém mais do que eu.

Carmozino



Conheci Carmozino, andando pelas ruas do Jardim Shangai. Passaria como mais um cidadão comum, não fosse o rosto lambuzado de um creme branco e um colar de pequenos ossos no pescoço. Todo esquisito.
As roupas rasgadas de punk e os piercings espalhados pelo corpo são aceitáveis nestes dias de fim de mundo, mas passear descalço é exagero.
Sua pequena barbicha é como um troféu dos dezoito anos. Vive cantarolando músicas sertanejas de um jeito apaixonado, mas fica eufórico com Raul Seixas.
Eu soube que o colar era de uma carcaça encontrada na rua. Levou o bicho para casa para se decompor ás suas vistas. Os vizinhos não gostaram, chamaram a policia para averiguar. Perturbação de sossego. Motivo pelo qual foi expulso de casa. A gota d’água já era esperada.
Adotou um módulo policial abandonado como seu. Levou colchão, travesseiro e coberta. Volta para casa, quando precisa usar o banheiro.
Muitas histórias e façanhas são atribuídas ao irrequieto Temósclito Carmozino, o bem-querido louco do bairro. Com ele, o assunto nunca morre. Tão agitado, que vez ou outra fala com as paredes, com o cachorro, com o céu, com as mãos, com o que tiver pela frente.
Dizem que invadiu o Paço Municipal pela porta dos fundos e foi exigir do prefeito algumas melhorias. Ele não nega. Gabou-se quando começaram a asfaltar a sua vila na semana seguinte.
Na época das eleições, estava no palanque dos candidatos, como papagaio de pirata.
No jornal da cidade, apareceu sua foto como compositor da música ganhadora do Festival da Canção de Araucária. Parece que viver nas esquinas como vagabundo fez dele um exímio mestre das guarânias paraguaias. Todo mundo diz que foi erro de impressão ou somente alguém parecido.
É o único que conheço que conseguiu dormir no ônibus e acordar no outro dia no estacionamento do Triar. Alguma falha do pessoal da limpeza que o deixaram varar a noite inteira no banco de trás. Ele disse que ficou com duas zeladoras.
Namorou uma Teresa Lôca na Praça Matriz. De um dia pro outro ele se ajeitou. Cortou cabelo, tomou banho, ficou calmo e comportado. Então, ficava esse rapaz prá baixo e prá cima de folia com uma menina esquisita de saia rodada. Ela se passava por cigana e fingia ler mãos. A mentira corria solta, assim como o dinheiro gasto com crack. A maior das noiadas. Loucura demais até para ele. Largou mão. Não era bobo.
Numa fase espiritual, de terno e gravata, surgia nas igrejas da cidade, sempre alardeando um atropelamento na esquina. Enquanto meio mundo corre para ver sangue, ele aproveitava a deixa para bradar aos que ficaram: “Arrependei-vos, crentarada!”.
Voltou a estudar, mas pertencer a uma instituição e seguir suas regras deram um resultado negativo a ele. Não conseguia se concentrar. No caderno, as anotações, garatujas e rabiscos mostravam a fuga de ideias. Em suas idéias de grandeza, acreditava que seu pai era dono de Araucária, da Refinaria, do Bakana’s. Não era mentira, eram os primeiros sinais evidentes de loucura.
Compareceu á aula de chinelos. Outro dia, descalço. Também com uma baita cueca samba calção. Tudo o que geralmente se sonha, ele trazia para realidade. Que inveja. Só não conseguiu voar.
O fim da picada aconteceu quando apareceu com o cabelo e o rosto todo ensaboado. Os professores envolveram pedagoga, juizado, o escambau para tirá-lo da escola.
A falta de convívio social contribui para sua primeira depressão. Foi internado, mas escapou em poucos dias.
Sem sono, perambulando pelas ruas, topou com um pessoal se preparando para pegar um ônibus de excursão para praia. Entrou de gaiato e sumiu no mundo. Uns meses depois o viram trabalhando na balsa de travessia para a Ilha do Mel. Assim que gritaram seu nome, ele recobrou sua consciência. Mais ou menos.
Voltou á pé para Araucária. Não morreu de fome por que afanou um cacho de bananas em Morretes.
De andarilho passou a ser maratonista. Hoje, é atleta patrocinado pela prefeitura,
Na estante da casa de sua mãe estão alguns troféus ganhos e uma foto com seu ex-pai, o prefeito.
Apesar de tudo, de um jeitinho aqui e ali, esse maluco sabe viver.

Carmelo


Curso de oratória na capital, um ano estudando teatro no Seminário, benzedeira, zona, nada adiantou para criar coragem e perder essa vergonha.
- O Papa vem pro Brasil. Quem sabe com a benção dele, você mude – diz a velhinha aflita com o filho marmanjo incomodando dentro de casa.
Na TV, o jornal anuncia uma caravana que sairá de Curitiba para ir ver o Santo Padre em terras cariocas.
- Mãe, nem adianta. Não quero falar com essa gente. Tenho vergonha.
- Seria muito bom para você. Por favor, vá se distrair e conhecer gente nova. Eu ajudo, eu pago.
- Será que consigo chegar até o Rio de Janeiro sem falar com ninguém?
- Quer saber? Cale a boca!

O suicida


Vem de fora, o mais original suicida da cidade. O moço subiu no alto da torre da velha igreja e se jogou sem hesitar. Quem daqui imaginou algo assim?
Ele quebrou-se por inteiro e não morreu. Sorte de curitibano.
Sinto lhe dizer que dificilmente daria certo. Araucária é sumidouro de gente, mas “morte matada”.
Desovam-se corpos aos montes, pelas estradinhas rurais. Tiros e quedas ás margens do Passaúna. Tombam á tôa, por muito pouco, em nossos bairros mais distantes.
- Se for para aqueles lados, tem que levar escudo para se proteger das flechadas dos índios - citação costumeira dos araucarienses.
Agora agoniza no Hospital do Trabalhador enquanto muitos nem tiveram esta chance. Aqui, a todo o momento perecem na trairagem enquanto vem e vão, sem sequer dever algo.
Conforme a policia averiguou com seus parentes, sua vida estava de cabeça para baixo nos últimos dias. Inúmeras dívidas, demissão do emprego e o fim de um relacionamento amoroso parecem ser a motivação para o ato. Quem pensaria o contrário?
Ninguém sabe é que uma gralha azul alçou um voo rasante sobre sua cabeça a cada mau agouro. Foram três aparições, todas certeiras em seu fim. A ave o cercou no Centro, no Pinheirinho e no Boqueirão.
Acordou com o grasnar. Aflito, saiu de casa ás pressas. Viu de revesgueio o par de asas batendo em sua direção. Seguiu para Araucária, procurar uma velha benzedeira. Deu com os burros n’água. A senhorinha caolha morreu há algum tempo. Com sua nora sobrou apenas algumas receitas de chás medicinais e um livro despedaçado com significados de sonhos. Algum vizinho ainda vinha consultar sua sorte.
Pediu para a moça abrir na página que fala sobre pássaro, de preferência azul: Angústia, liberdade tolhida.
Justo num domingo, o dia mais melancólico da semana, com o prenuncio de nova tragédia, da possível prisão injusta entrou em choque. Sem norte, sem horizontes para a Cidade Sorriso, pulou para a morte, antecipando a dor.
E francamente, quem já viu gralha azul por essas bandas?
Jamais.

Bel-prazer


Disseram-me que ela tinha pacto.
Só porque ela é linda demais? Loirinha, baixinha, olhos azuis, aparelho nos dentes, uniforme do Szymanski perfeitamente colado no corpo. Que mal há nisso?
A pequena vila perece em miséria medieval, mas ela mora numa das poucas casas de alvenaria, o único sobradinho. Na minha rua, por sorte. Para os vizinhos, aquelas paredes calfinadas são como um castelo onde vez ou outra comparecem para mendigar. E o ciúme deles aumenta a cada prato de comida recebido.
Seus pais trabalham. É por isso que anda bem arrumada. Deveria ser um tanto trivial. E como dizer isso para todas as molambentas da região? Essas que acham algo fantástico nunca vê-la repetir roupa e agora a evitam por medo de alguma praga.
Comprar outro carro, viajar por uma semana, chegar de taxi em casa, enfim, tudo é motivo para que aqueles “olhos de corvos” imaginem poções na cozinha, rituais na lavanderia. Percebi que a esquina forma uma encruzilhada! Coincidência.
O cachorrinho dela morreu de velhice e o enterro foi num terreno baldio. Quem tem a língua grande, jura ter visto o animal estripado e sem coração.
O pé de amora carregado, mas as crianças dos arredores tem medo de subir no muro catar um pouco.
Nos corredores estreitos do colégio, nossos olhares se cruzaram. Dias depois mando um recado que quero conhecê-la. Depois de tanto falatório, converso com ela meio receoso, mas com um simples beijo começou o encantamento. Ficamos.
– Olha lá, piá. Isso não é natural. É algum tipo de magia – alertam os piás da vizinhança.
Ando na vila, rodeado de espectadores debruçados em portões esperando algum carro me atropelando, um raio caindo em minha cabeça.
Saio até pracinha e acompanhado de algumas colegas femininas. Nada sério. Ela vê pela janela de seu quarto. Acenei de longe. Baixei a cabeça e segui em frente meio indiferente. O que não tem remédio, remediado está.
No bar, chamo seu irmãozinho de cunhado. Ele não entende. Ela me ligou minutos depois, mas eu não estava em casa.
Marcamos outro encontro, tive de faltar.
Ela pareceu normal na virada do ano, quando ficamos pela segunda vez. Não era uma viúva negra, nem bruxa, apenas uma menina delicada que caiu nos meus joguinhos emocionais. Gosto desta estratégia de “morde e assopra”.
Ela que me aceitou. Nada foi forçado. Agora em minhas mãos, sem feitiços e sem magia, fraqueja.
O amor tudo suporta e serve de consolo.