sábado, 22 de novembro de 2014

Miss


Quem vê a estrela tão onipresentes na mídia, jamais poderia imaginar que a moçoila andou por canhadas tão caídas como Arauca. Os pezinhos de fada que hoje deslizam pelas passarelas da alta moda, no passado atravessaram a esquina do Cavalo Baio.
Incrível! Ficamos juntos e eu até a dispensei. Algo inconcebível, mas tive meus motivos.
Era um linda donzela, uma princesinha, toda delicada. Ainda sem experiência para beijar.
Nos trombamos, na quadra do CSU. Ela treinava basquete. Uma troca de palavras e lá estávamos escondidos, perambulando na arquibancada do campo de futebol. Montei toda uma história de amor na minha cabeça, a cada volta que meus braços davam na sua cintura fina.
Umas bandas pelo Jardim Olímpico e voltávamos para casa, em direção á Trincheira, até que em certa altura, larga de minha mão e pede para eu ficar.
Uma senhora vem de encontro a nós. Sua mãe, pisando duro e de cara amarrada.
Cumprimentei. Mas não tive resposta. Sorte não ter levado um piau.
No meu traje domingueiro, largado e com skate do lado, não causei boa impressão.
- Minha filha, o que eu vivo te dizendo? Você não me escuta? Bóra prá casa. Disse ontem, disse hoje...
Segui meu caminho feliz, pois ela ainda olhou para trás e sorriu pra mim. A confirmação de que valeu a pena.
Peguei rabeira no Triar e fui embora bem á pampa.
Dias depois, consegui seu telefone e marcamos um encontro na matinê do Operário.
Atrás do clube, havia um terreno baldio e com os contatos certos, achei uma passagem secreta, num buraco na parede de uma antiga reforma.
No salão escuro, envolto em densa fumaça, nem os seguranças me viram entrar. Nem a maloqueirada da vila rival me flagraram. Mas a sogrinha nos achou facilmente. Era sócia do clube.
Aproveitamos juntos apenas uma sessão de vanerão. Uns beijinhos, coisa pouca.
- Filha, o que eu te disse? Bóra prá casa. Tenho que repetir quantas vezes? Disse ontem, disse hoje...
E se saíram as duas. Ainda bem, que no lusco-fusco das luzes piscantes, ninguém percebeu a situação constrangedora.
Ainda descolei carona até o Fléshão. Dois toques, chorei a entrada. E no fim das contas, voltei para casa bem faceiro. Bêbado, estriguinado, trançando as pernas, sem ter um tostão no bolso.
No meio da semana, fui atrás dela, no colégio Szymanski. Pulei prá dentro, com medo dos gambés. Pulei prá fora com medo do inspetor de alunos. Pulei prá dentro, fugindo da maloca da vila rival. Pulei prá fora, para procurá-la na saída de alunos.
Achei minha guria na sorveteria, logo em frente. Me beijou como nenhuma outra o fez.
Estávamos á caminho das quadras, para ficar mais á vontade, até que a mãe nos achou. Será que tinha algum informante? Só pode.
- Minha filha, bóra prá casa. Tô cansada de repetir? Eu vivo te falando, disse ontem, disse hoje...
Desta vez, fiquei curioso. Sou novo na vida dela? O que será que a dona vive falando? De mim? Será clarividente?
Dias depois, veio uma tarde agitada de Festa do Pêssego. O dia de folia em Araucária. Não tinha como dar errado.
Com os contatos certos, achei uma trilha secreta. Embrenhei-me na mata, pulei algumas cercas, rastejei por debaixo de outras e escalei muros. Até encontrei uma pinha pelo chão. Sinal de que o dia era de sorte. Pelo ponto cego da segurança me misturei em meio ao povão.
Logo, a encontrei á próximo á cachoeira. Estava mais bela do que nunca. Aguardava-me com uma garrafa de vinho de pêssego. Subimos até as velhas casas polonesas. Namoramos muito, a tarde voou.
Ninguém sabia, mas a megera nos achou no meio da multidão. Armada de vara de marmelo, arrastou a coitada pelos cabelos.
- Te peguei, praga? O que eu vivo te dizendo? Cria caraguatá, mas não dá! Cria caraguatá, mas não dá!
Fiquei triste, pela falta de garra da menina em não dizer nada. Apanhar calada. Como se fosse uma marionete nas mãos da mãe. Todo mundo vaiando, ninguém se meteu. Um vexame. Fui fraco, mas naquele momento vi a barca furada o qual seria aquele relacionamento.
- Cria caraguatá, mas não dá!
Recentemente, ela fez uma declaração polêmica, dizendo ser uma balzaquiana virgem.
Acredito.
Talvez este seja o segredo do sucesso.

domingo, 16 de novembro de 2014

Olho-de-boi


Aos nove anos de idade, enquanto muitas crianças penavam em sofríveis finais de semana estirados pelo sofá assistindo amargosa TV, meu pai me levou para assistir ao mais novo e grandioso espetáculo popular da cidade, uma partida de Boi-bola. Algumas faixas descreviam o campeonato como Futeboi, mas literalmente dá tudo na mesma.
Fiquei muito entusiasmado por ser lá para baixo no Campo do Araucária, perto do Orfanato e do Parque das Pontes. Desde criança este lugar ermo e decadente me atraia, pois na eterna ida e vinda do Colégio das Irmãs até em casa na Costeira, era muito excitante sair explorar o desconhecido.
Não era difícil de entender o jogo. Vinte e dois em campo, mais o juiz e um boi bravo correndo e bufando atrás de uma vítima qualquer. Era um olho no boi, outro na bola. A tensão dos jogadores era extremamente visível. Na arquibancada não era possível se concentrar e torcer direito quando o animal surgia á galope. Pior estavam os nervos de quem participava da partida. Ás vezes quem ganhava no placar, perdia na chifrada. Uma injustiça!
O lance que mais gostei era quando o zagueiro, temendo gol, solava o atacante e a bicuda na bola que fazia com que a pelota voasse fora do estádio e caísse no rio Iguaçu ao lado. Eles tinham de correr mais rápido do que a correnteza e se atirar nas águas lamacentas para tentar salvar a bola. Era uma espécie de triathlon, substituindo a bicicleta pelo bovino.
Como piázinho jaguara que sou, saí das vistas do meu pai para brincar pelo estádio. Um senhor parou-me, perguntando seu estava sozinho. Num tom de voz brando, e com muita educação, me pagou um sorvete. Acho que meu acanhamento me salvou. Não dei corda para o velhinho, e sem assunto agradeci e voltei para o meu assento. Eu nunca soube quais eram as suas intenções, mas gente como eu, criado á vara de marmelo e rabo de tatu no lombo desconfia de muito sorriso, guloseimas e ririrí.
Por sorte, a competição começou a ficar entediante e fomos embora.
No dia seguinte fui saber por um coleguinha da escola, que o boi virou touro e avançou para cima da arquibancada, matando três pessoas. Ele fugiu do gramado e levou o pânico generalizado pelo centro, deixando a cidade aterrorizada em estado de sítio. Aliás, péssimo trocadilho.
Na saída da escola, subi até a Praça Matriz. Na banca de jornal da japonesa vi a capa do noticiário local, em que estava estampado o rosto do generoso velhinho simpático dentre as vítimas da chacina.
No dia seguinte, por lei, foi proibida a execução deste tipo de jogo em Araucária. Apesar do breve e estrondoso sucesso, nunca mais se ouviu relato de outra partida na cidadezinha.
O que mais me impressionou foi o fato de sentir pela primeira vez a morte à espreita. Uma sensação serena, porém inquieta. E eu que nunca tinha me incomodado com o fim, nem quando rachei meu crânio ao meio andando de patins ou quando comi uma dúzia de lâminas de gilete percebi que o momento derradeiro pode acontecer a todo instante. Nem é tão raro como um olho-de-boi.

(extraído do E-book Crônicas Araucarienses)