domingo, 16 de novembro de 2014

Olho-de-boi


Aos nove anos de idade, enquanto muitas crianças penavam em sofríveis finais de semana estirados pelo sofá assistindo amargosa TV, meu pai me levou para assistir ao mais novo e grandioso espetáculo popular da cidade, uma partida de Boi-bola. Algumas faixas descreviam o campeonato como Futeboi, mas literalmente dá tudo na mesma.
Fiquei muito entusiasmado por ser lá para baixo no Campo do Araucária, perto do Orfanato e do Parque das Pontes. Desde criança este lugar ermo e decadente me atraia, pois na eterna ida e vinda do Colégio das Irmãs até em casa na Costeira, era muito excitante sair explorar o desconhecido.
Não era difícil de entender o jogo. Vinte e dois em campo, mais o juiz e um boi bravo correndo e bufando atrás de uma vítima qualquer. Era um olho no boi, outro na bola. A tensão dos jogadores era extremamente visível. Na arquibancada não era possível se concentrar e torcer direito quando o animal surgia á galope. Pior estavam os nervos de quem participava da partida. Ás vezes quem ganhava no placar, perdia na chifrada. Uma injustiça!
O lance que mais gostei era quando o zagueiro, temendo gol, solava o atacante e a bicuda na bola que fazia com que a pelota voasse fora do estádio e caísse no rio Iguaçu ao lado. Eles tinham de correr mais rápido do que a correnteza e se atirar nas águas lamacentas para tentar salvar a bola. Era uma espécie de triathlon, substituindo a bicicleta pelo bovino.
Como piázinho jaguara que sou, saí das vistas do meu pai para brincar pelo estádio. Um senhor parou-me, perguntando seu estava sozinho. Num tom de voz brando, e com muita educação, me pagou um sorvete. Acho que meu acanhamento me salvou. Não dei corda para o velhinho, e sem assunto agradeci e voltei para o meu assento. Eu nunca soube quais eram as suas intenções, mas gente como eu, criado á vara de marmelo e rabo de tatu no lombo desconfia de muito sorriso, guloseimas e ririrí.
Por sorte, a competição começou a ficar entediante e fomos embora.
No dia seguinte fui saber por um coleguinha da escola, que o boi virou touro e avançou para cima da arquibancada, matando três pessoas. Ele fugiu do gramado e levou o pânico generalizado pelo centro, deixando a cidade aterrorizada em estado de sítio. Aliás, péssimo trocadilho.
Na saída da escola, subi até a Praça Matriz. Na banca de jornal da japonesa vi a capa do noticiário local, em que estava estampado o rosto do generoso velhinho simpático dentre as vítimas da chacina.
No dia seguinte, por lei, foi proibida a execução deste tipo de jogo em Araucária. Apesar do breve e estrondoso sucesso, nunca mais se ouviu relato de outra partida na cidadezinha.
O que mais me impressionou foi o fato de sentir pela primeira vez a morte à espreita. Uma sensação serena, porém inquieta. E eu que nunca tinha me incomodado com o fim, nem quando rachei meu crânio ao meio andando de patins ou quando comi uma dúzia de lâminas de gilete percebi que o momento derradeiro pode acontecer a todo instante. Nem é tão raro como um olho-de-boi.

(extraído do E-book Crônicas Araucarienses)

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