quarta-feira, 29 de abril de 2015

Arrebol


Bola e carrinho nunca me faltaram, mas ganhar de presente uma luneta mexeu com minha cabeça. Ganhei as referências certas para moldar minha personalidade.
Não entendia bulhufas de astronomia, sequer conhecia o espaço. Arriscava apenas a encontrar timidamente o Cruzeiro. Sem apontar o dedo para evitar verrugas, conforme advertiam os mais velhos.
Depois de algumas semanas o céu escuro ficou um tanto enfadonho e sem vida. Não foi por falta de entusiasmo com o brinquedo novo, mas ninguém resiste observar aquelas labaredas magistrais no alto das torres da Refinaria.
Nem quis saber a grandeza de Sirius ou se Betegeuse explodiria. As chamas ofuscam qualquer estrela.
- Que altura o fogaréu alcança? Que temperatura é essa que não derrete a estrutura metálica?
Os pontinhos luminosos formando a Via Láctea não tinham vez diante do fogo infernal alcançando as nuvens e incomodando os céus.
Fazia parte da minha rotina ir com meu pai até o centro e esperar minha mãe chegar da capital. Antes do Avenidas das nove horas aparecer eu sacava da luneta para ver o mundo mais de perto. Minha melhor brincadeira era essa janela indiscreta na boca da noite.
Com o tempo aprendi a ler os lábios, reconhecer elogios, premeditar gente se abraçando depois de muitas doses no bar Gauchita. Ver um certo grau de arrependimento dos bebuns, que trançando as pernas, desciam com certo receio ao Morro do Piolho. Seria cósmico, se não fosse trágico.
Quando o local de espera era o Cavalo Baio, minhas vistas queimavam espreitando o Seu Iarek martelando a bigorna e forjando o metal.
Orbitando por ali, o pedincho Pedro aprendia que um beijo vale bem mais que um real ás moças. Se a mulher é desatenta, então, solta um "casa comigo" em tom sério.
A Mulher-Elefante também pedia ajuda. Assim como os fandangueiros felizes tocando violas no dia de Reis.
Se até o prefeito calhava a subir o Paço e se divertir com foguetório na madrugada, ninguém mais poderia ser absolutamente sério.
Na minha invenção, todos eram suspeitos de ser heróis ou tarados do Werka. Focava as lentes para estudá-los. Descobrir os segredos do universo caótico dessa gente de pés rápidos, dessa gente caída na sarjeta.
Um dia, me pediram para ajustar a luneta para observar crateras na Lua. Eu não queria saber destas coisas. Com certa crueza de pensamento alegava a porção celestial de cada ser humano, com tanto a explorar.
A cada pôr do sol eu me perguntava:
- Seriam os batateiros astronautas?

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